quarta-feira, 2 de maio de 2012

A. J. Andrade / Fernanda guimarães - Marranos de Lagoaça no Tribunal da Inquisição (3)


Outro pormenor acrescentou Catarina: antes de principiar qualquer oração ou cerimónia, punha-se a não na testa. E esclareceu que era “em sinal de que se benzia”. Algo como o sinal da cruz que os cristãos fazem. E ao colocar a mão na testa e iniciar o rito, havia também uma oração para acompanhar o gesto e que ela ditou para o processo:

- A ti bendito Adonay me benzo
buelve Senhor tua santa e bendita cara a mim,
aceita Adonay esta cura de Nabad
o Senhor comigo e eu com ele
o Senhor adiante e eu atrás dele.

E enquanto amortalhava o defunto, Catarina diz que rezavam a oração seguinte:

- Sea bendita folgança compuesta com descanso
alto debaixo de alas de Divindad, gratos santos
e limpos que alustram al cielo, la alustren
y la esclarescan escapamento de guessos
perdão de culpas alegamento de rebelto
ligamento de salvação, piedad e clemência,
parte buena aliciadad delante del morador
del cielo por esta alma que partió
deste mundo para el otro, Rey de los reys
e sus piedades ampare e acompanhe sobre ela,
sea paz como está escrita, dá-lhe paz e repouso
sobre sus jazigos andando en descuento
al fin de sus dias, lá harás estar la arroyo
arroxo de sus vícios la adormentarás
com Abraão, Moisés e Aram, cierta está muerte,
muerte de nossos hermanos com piedade digamos.

E os circunstantes, a modos de refrão, salmodiavam uma “oração da folgança” sincopada:

- Folgança composta santa e erguida
salta debaixo das alas da divindade
como lustro del cielo dá lux
e clareza a esta alma.
Fazemos aqui uma pausa para chamar a atenção dos leitores para o facto de algumas vezes as frases não fazerem muito sentido e para a mistura de palavras castelhanas e portuguesas. Na verdade isso é fruto e expressão das próprias vivências destes homens e mulheres formando uma nação sem terra própria, em permanente itinerância por terras alheias e entre gente estranha, obrigados a esconder a sua cultura e a sua crença e a inventar formas de estar e viver apagados, no palco da vida. Depois é preciso atender ao facto de os notários da Inquisição não reproduzirem com exactidão as palavras ditas pelos réus, muitas vezes a custo, entre choros e convulsões. Mas vejam ainda mais uma das orações que Catarina Barrenta ditou para o processo e que rezava pelas almas dos defuntos:

- Senhor Deus de Arão
Senhor do mundo todo
Agora por seu bem seja.
Já não há corvão nem chegação
quem por ela peça nem por ela rogue
se não é deste meu sangue
se não é deste meu sebo que hoje se derrete
em louvor do senhor e salvação desta alma.

Outra nota a ter em conta é o facto de toda a ritualidade e todo o devocionário marrano serem transmitidos em segredo e as orações reproduzidas apenas por via oral. Neste ponto Catarina declarou que foi o seu tio João Rodrigues, em Vinhais, logo em pequena, começou a ensinar-lhe as coisas da lei de Moisés, continuando com seus pais a aprendizagem e a observância dos preceitos judaicos, mas sempre aparentando um comportamento católico, até nos actos de maior relevância, em termos teológicos. Vejam este depoimento feito por Catarina:
- Disse que quando comungava e recebia o Santíssimo sacramento, por obrigação da Quaresma, o fazia em cumprimento do mundo e o recebia depois de almoçar, para zombar e escarnecer dele; e o mastigava com os dentes, por lhe ter dito seu tio João Rodrigues, que lhe fez o ensino da lei de Moisés, que o sacramento era um pequeno de pão.
Seria fastidioso descrever como a Barrenta e os outros guardavam o sábado como dia santificado e guardavam uma dieta alimentar deixando de “comer “carne de porco, lebre, coelho e peixe de pele” por ser comida impura e trefega. Mas não resistimos a transcrever a “oração dos salmos” que ela rezava nesse dia de descanso semanal:
- Este é o dia do santo sabat
mandou meu Senhor Adonay
que nos folgássemos
e alegrássemos em Ele.
Salmo cantado, salmo rezado,
para sempre seja louvado,
bendito e glorificado.
Tal dia como este
de tanta alegria e tanto louvor,
subam os anjos ao céu
a louvar o Senhor.
Para sempre seja louvado
o verdadeiro Adonay
que nos fez e nos criou.

Também não falaremos da guarda do dia grande (Kipur) que ela nomeou, ano a ano, como e com quem celebrou. Guardava igualmente o jejum do capitão e o da Páscoa, para além do da Rainha Ester “que vem em Fevereiro e dura 3 dias e 3 noites, estando neles sem trabalhar, com os melhores vestidos e camisas lavadas, sem comer senão à noite”. E, em cada mês, guardava o jejum das segundas e quintas-feiras da lua nova. Mas transcrevemos a “oração de oferecer” esses jejuns:
- Bendito e louvado seja o nome santo do senhor
que céu e terra criou, mar e areias deixou
em quatro letras que era um e não outro
Rei dos reis, Príncipe dos príncipes,
Senhor dos senhores que quem a Ele se apegasse
que Ele o socorreria com socorro de salvação
e bendição da graça divina sua ao divino Senhor;
ao Senhor me apego como serva obediente
diante de seu Senhor a pedir mercês
o que Ele tem mais de bondades tenho eu de maldades,
o que ele tem mais de misericórdias tenho eu de misérias.
Ao alto divino Senhor lhe peço me valerá
forte, por onde não venha mal nem pragas,
nem pelas nossas almas nem pelas nossas vidas.
Usai Senhor piedosamente comigo, não seja
quaterno o castigo nem do demónio, nem do verdugo.
Senhor merecemos a morte, bem sabemos senhor
que a merecemos mas antes Senhor nos queremos
passar desta vida para a outra que morrer por mão alheia.
Abri Senhor minhas entranhas em fogo de vosso divino favor,
abri Senhor meu coração em fogo do vosso divino amor.
Esta minha petição e esta minha reza seja posta
e oferecida diante de vossa divina presença, na vossa divina
e soberana Mesa para perdão de meus pecados,
salvação de minha alma e amparo de meu corpo. Amén.

Catarina oferecia jejuns a Adonay e, em contrapartida, dele esperava ajuda contra seus inimigos. Por isso o invocava nos seguintes termos:

- Meu Deus do céu baixai à terra
vereis batalhas e guerra
pois sois Deus dos deuses
senhor do mar e da terra.
Inimigos meus, inimigas minhas
tende-vos em vós
que o vivo Adonay está entre mim e vós.
Com seu braço nos tem quebrantados
com sua vara nos tem pejados.
O Senhor vos quebrante,
vos tire do vosso ser e do vosso valer
como quebrantou aquele rei faraó
quando ia atrás do povo de Israel.
Meu Deus de Israel cumpri vossas profecias,
que vejamos em nossos dias reinar Israel bendito
e apregoada seja Vossa santíssima lei,
coberta e descoberta; nunca  te faça coisas
meu Senhor com que te esqueças. Amén.

E terminamos com mais uma oração extremamente original ditada por Catarina Lopes Barrenta para o processo:
- Ó alto Deus de Abraão, senhor meu pai,
sare-me e tenha-me de sua mão;
todos os males se me aplaquem,
que seja benta na alma  e nos pensamentos
de todo o interior livre seja de tormentos,
esteja eu com o nome do senhor
que tudo me suceda bem
onde puser a mão não contradiga ninguém.
Ó alto Deus de Abraão, grande, poderoso e forte,
a mim me tenha de sua mão, me queira livrar a morte.
Deus me benza e me bendiga cada hora e cada dia
como Deus de isac, Deus de Jacob, deus de Israel
seja comigo na minha guarda e na minha guia.
Aquele grande Senhor que de tudo é sabedor
tudo sabe, tudo vê, tudo tem de sua mão.
todos aqueles e aquelas que comigo tratem
o Senhor lhe bote a sua bênção e me dê amparo bom
de sua santa e bendita mão. Amén.




in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)

Os autores
Maria Fernanda Guimarães é investigadora  na área dos  estudos sefarditas, nomeadamente das comunidades  de criptojudeus transmontanas.
Colaboradora da Catedra de Estudos Sefarditas  “Alberto Benveniste”,  desde as suas primeiras actividades,  tendo contribuído com investigação para o “Dicionário Histórico dos Sefarditas Portugueses – Mercadores e Gente de Trato – Direcção Cientifica A.A. Marques de Almeida -  Campo da Comunicação – 2009.
Colaboradora,   na área da investigação,   na construção do “Genome Project”  da  família do Arquitecto  canadiano Richard George Henriques.
Colabora, na área da investigação,    para  Quinzenário “Terra Quente” onde é responsável pela página “Entre o Cristianismo e o Judaísmo” desde 1999.

António Júlio Andrade nasceu em Felgueiras, concelho de Torre de Moncorvo em 10.12.1947, no seio de uma família modesta de lavradores. Estudou nos seminários de Vinhais, Bragança e Braga onde concluiu o 2º ano de teologia. Em Outubro de 1969 iniciou a vida de professor no colégio Campos Monteiro, matriculando-se no curso de filosofia da universidade do Porto, como estudante trabalhador. Vida interrompida para cumprir o serviço militar obrigatório em Mafra, Lamego e Funchal, antes de embarcar para o Norte de Angola onde serviu como alferes miliciano durante 2 anos, com louvor do comandante da Região Militar. De regresso a Trás-os-Montes, retomou a vida de professor provisório do ensino secundário, desenvolvendo em paralelo actividades nos campos sindical e político, com incursões no jornalismo. Depois de uma breve passagem pelo centro de documentação da Ferrominas EP, entrou para os quadros da câmara municipal de Torre de Moncorvo como funcionário e ali continua como técnico especialista na Biblioteca Municipal. De 1997 a 2005, foi director do jornal Terra Quente, quinzenário onde, em parceria com Fernanda Guimarães, continua assegurando a publicação regular de uma página dedicada ao estudo dos judeus e marranos do Nordeste Trasmontano, iniciada no ano de 2000 De parceria com a mesma investigadora tem publicado diversos trabalhos, em várias revistas e colectâneas, bem como os seguintes livros:

* Subsídios para a História da Inquisição em Torre de Moncorvo.
* Carção Capital do marranismo.
* Jacob de Castro Sarmento.
* A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa.
No ano de 1987 foi o vencedor nacional dos prémios Ford de conservação da natureza e do património cultural, patrocinados pelas secretarias de estado do ambiente e da cultura, com um projecto de salvaguarda e recuperação de um lagar comunitário da cera existente na sua aldeia natal. E sobre a sua aldeia e o seu concelho, publicou vários trabalhos monográficos, nomeadamente:
* Conhecer Felgueiras.
* Boletim da Comissão de Festas de Santa Eufémia – 4 edições.
* Torre de Moncorvo Notas Toponímicas
* Quadros Militares da História de Moncorvo.
* Arquitectos, Mestres de Obras e Outros Construtores da Vila de Moncorvo.
* Torre de Moncorvo (1890 – 1905) Vida Política, Cultural e Recreativa.
* História Política de Torre de Moncorvo 1890 – 1926.

Trabalhos dos autores

Caminhos Nordestinos de Judeus e Marranos – página do Jornal Terra Quente de Mirandela desde  15-04-1999.
Rota dos Judeus – A Voz do Nordeste de Bragança.
Poderá a Fenix Renascer? Contributo para definição de uma “Rota de Judeus” no Nordeste Transmontano – Tese apresentada  ao III Congresso Transmontano – Bragança- 2002
Percursos  de Francisco Lopes Pereira e Gaspar Lopes Pereira, cristãos-novos de Mogadouro – Caderno de Estudos  Sefarditas, n.º 5 2005 – Cátedra de Estudos Sefarditas “Alberto Benveniste” – Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
O Dr. Francisco da Fonseca Henriques e a sua família na Inquisição de Lisboa - Brigantia – Revista de Cultura – Volume de homenagem ao Dr. Belarmino Afonso – 2006.
Subsídios para a História da Inquisição de Torre de Moncorvo – Câmara Municipal de Torre de Moncorvo 2007.
Os Távoras e os cristãos-novos no progresso de Mirandela  - Actas da IX Jornadas Culturais  de Balsamão - Centro Cultural de Balsamão 2007.
Carção – Capital do Marranismo – Edição da Associação Cultural dos Almocreves de Carção – Associação CARAmigo – Junta freguesia de Carção – Câmara Municipal de Vimioso – 2008.
Contribuição dos judeus e cristãos-novos no progresso de Vila Flor – Retalhos da História de Vila Flor – XI Jornadas  Culturais de Balsamão – 4 de Outubro de 2008.
A Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa – Editora Nova Veja – Lisboa – Câmara Municipal de Mogadouro – 2009.
Jorge Lopes Henriques  de Carção e alguns familiares processados pela Inquisição. – Revista Almocreve  - Edição da Associação Cultural dos Almocreves de Carção 2009.
Entre a Sede da Inquisição e o Convento das Portas do Céu de Telheiras – Cadernos Culturais de Telheiras , 2.ª série, n.º2 Novembro de 2009.
Notas para um Catecismo Marrano  - – Revista Almocreve  - Edição da Associação Cultural dos Almocreves de Carção 2010 .
Tefillah cotidiano – Um caderno de Orações marranas  -  Cadernos Culturais de Telheiras , 2.ª série, n.º 2 Novembro de 2010.

A aguardar publicação

Os Isidro – Uma família de cristãos-novos de Torre de Moncorvo.
Os Almeida Castro - Uma família de cristãos-novos de Izeda.
Quintela de Lampaças -  Uma missa judaica.
Vimioso anos de 1650 – Uma rede de passadores de judeus  desmantelada pela  Inquisição de Coimbra – II Jornadas de História Local – “Judaísmo e Marranismo. Duas faces  de uma identidade” – Câmara Municipal de Vimioso – Maio de 2009.

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Notas da minha Agenda - 6

  Jorge Lage, in: Noticias de Mirandela