Outro pormenor acrescentou
Catarina: antes de principiar qualquer oração ou cerimónia, punha-se a não na
testa. E esclareceu que era “em sinal de que se benzia”. Algo como o sinal da
cruz que os cristãos fazem. E ao colocar a mão na testa e iniciar o rito, havia
também uma oração para acompanhar o gesto e que ela ditou para o processo:
- A ti bendito Adonay me benzo
buelve Senhor tua santa e bendita cara a
mim,
aceita Adonay esta cura de Nabad
o Senhor comigo e eu com ele
o Senhor adiante e eu atrás dele.
E enquanto amortalhava o defunto,
Catarina diz que rezavam a oração seguinte:
- Sea bendita folgança compuesta com
descanso
alto debaixo de alas de Divindad, gratos
santos
e
limpos que alustram al cielo, la alustren
y
la esclarescan escapamento de guessos
perdão de culpas alegamento de rebelto
ligamento de salvação, piedad e clemência,
parte
buena aliciadad delante del morador
del
cielo por esta alma que partió
deste
mundo para el otro, Rey de los reys
e sus piedades ampare e acompanhe sobre ela,
sea paz como está escrita, dá-lhe paz e
repouso
sobre
sus jazigos andando en descuento
al
fin de sus dias, lá harás estar la arroyo
arroxo
de sus vícios la adormentarás
com Abraão, Moisés e Aram, cierta está
muerte,
muerte de nossos hermanos com piedade
digamos.
E os circunstantes, a modos de
refrão, salmodiavam uma “oração da folgança” sincopada:
- Folgança composta santa e erguida
salta debaixo das alas da divindade
como lustro del cielo dá lux
e clareza a esta alma.
Fazemos aqui uma pausa para
chamar a atenção dos leitores para o facto de algumas vezes as frases não
fazerem muito sentido e para a mistura de palavras castelhanas e portuguesas.
Na verdade isso é fruto e expressão das próprias vivências destes homens e
mulheres formando uma nação sem terra própria, em permanente itinerância por
terras alheias e entre gente estranha, obrigados a esconder a sua cultura e a
sua crença e a inventar formas de estar e viver apagados, no palco da vida.
Depois é preciso atender ao facto de os notários da Inquisição não reproduzirem
com exactidão as palavras ditas pelos réus, muitas vezes a custo, entre choros
e convulsões. Mas vejam ainda mais uma das orações que Catarina Barrenta ditou
para o processo e que rezava pelas almas dos defuntos:
- Senhor Deus de Arão
Senhor do mundo todo
Agora por seu bem seja.
Já não há corvão nem chegação
quem por ela peça nem por ela rogue
se não é deste meu sangue
se não é deste meu sebo que hoje se derrete
em louvor do senhor e salvação desta alma.
Outra nota a ter em conta é o
facto de toda a ritualidade e todo o devocionário marrano serem transmitidos em
segredo e as orações reproduzidas apenas por via oral. Neste ponto Catarina
declarou que foi o seu tio João Rodrigues, em Vinhais, logo em pequena, começou
a ensinar-lhe as coisas da lei de Moisés, continuando com seus pais a
aprendizagem e a observância dos preceitos judaicos, mas sempre aparentando um
comportamento católico, até nos actos de maior relevância, em termos
teológicos. Vejam este depoimento feito por Catarina:
- Disse que quando comungava e recebia o Santíssimo sacramento, por
obrigação da Quaresma, o fazia em cumprimento do mundo e o recebia depois de
almoçar, para zombar e escarnecer dele; e o mastigava com os dentes, por lhe
ter dito seu tio João Rodrigues, que lhe fez o ensino da lei de Moisés, que o
sacramento era um pequeno de pão.
Seria fastidioso descrever como a
Barrenta e os outros guardavam o sábado como dia santificado e guardavam uma
dieta alimentar deixando de “comer “carne de porco, lebre, coelho e peixe de
pele” por ser comida impura e trefega. Mas não resistimos a transcrever a
“oração dos salmos” que ela rezava nesse dia de descanso semanal:
- Este é o dia do santo sabat
mandou meu Senhor Adonay
que nos folgássemos
e alegrássemos em Ele.
Salmo cantado, salmo rezado,
para sempre seja louvado,
bendito e glorificado.
Tal dia como este
de tanta alegria e tanto louvor,
subam os anjos ao céu
a louvar o Senhor.
Para sempre seja louvado
o verdadeiro Adonay
que nos fez e nos criou.
Também não falaremos da guarda do
dia grande (Kipur) que ela nomeou, ano a ano, como e com quem celebrou.
Guardava igualmente o jejum do capitão e o da Páscoa, para além do da Rainha
Ester “que vem em Fevereiro e dura 3 dias e 3 noites, estando neles sem
trabalhar, com os melhores vestidos e camisas lavadas, sem comer senão à
noite”. E, em cada mês, guardava o jejum das segundas e quintas-feiras da lua
nova. Mas transcrevemos a “oração de oferecer” esses jejuns:
- Bendito e louvado seja o nome santo do
senhor
que céu e terra criou, mar e areias deixou
em quatro letras que era um e não outro
Rei dos reis, Príncipe dos príncipes,
Senhor dos senhores que quem a Ele se
apegasse
que Ele o socorreria com socorro de salvação
e bendição da graça divina sua ao divino
Senhor;
ao Senhor me apego como serva obediente
diante de seu Senhor a pedir mercês
o que Ele tem mais de bondades tenho eu de
maldades,
o que ele tem mais de misericórdias tenho eu
de misérias.
Ao alto divino Senhor lhe peço me valerá
forte, por onde não venha mal nem pragas,
nem pelas nossas almas nem pelas nossas
vidas.
Usai Senhor piedosamente comigo, não seja
quaterno o castigo nem do demónio, nem do
verdugo.
Senhor merecemos a morte, bem sabemos senhor
que a merecemos mas antes Senhor nos
queremos
passar desta vida para a outra que morrer
por mão alheia.
Abri Senhor minhas entranhas em fogo de
vosso divino favor,
abri Senhor meu coração em fogo do vosso
divino amor.
Esta minha petição e esta minha reza seja
posta
e oferecida diante de vossa divina presença,
na vossa divina
e soberana Mesa para perdão de meus pecados,
salvação de minha alma e amparo de meu
corpo. Amén.
Catarina oferecia jejuns a Adonay
e, em contrapartida, dele esperava ajuda contra seus inimigos. Por isso o
invocava nos seguintes termos:
- Meu Deus do céu baixai à terra
vereis batalhas e guerra
pois sois Deus dos deuses
senhor do mar e da terra.
Inimigos meus, inimigas minhas
tende-vos em vós
que o vivo Adonay está entre mim e vós.
Com seu braço nos tem quebrantados
com sua vara nos tem pejados.
O Senhor vos quebrante,
vos tire do vosso ser e do vosso valer
como quebrantou aquele rei faraó
quando ia atrás do povo de Israel.
Meu Deus de Israel cumpri vossas profecias,
que vejamos em nossos dias reinar Israel
bendito
e apregoada seja Vossa santíssima lei,
coberta e descoberta; nunca te faça coisas
meu Senhor com que te esqueças. Amén.
E terminamos com mais uma oração
extremamente original ditada por Catarina Lopes Barrenta para o processo:
- Ó alto Deus de Abraão, senhor
meu pai,
sare-me e tenha-me de sua mão;
todos os males se me aplaquem,
que seja benta na alma e nos pensamentos
de todo o interior livre seja de tormentos,
esteja eu com o nome do senhor
que tudo me suceda bem
onde puser a mão não contradiga ninguém.
Ó alto Deus de Abraão, grande, poderoso e
forte,
a mim me tenha de sua mão, me queira livrar
a morte.
Deus me benza e me bendiga cada hora e cada
dia
como Deus de isac, Deus de Jacob, deus de
Israel
seja comigo na minha guarda e na minha guia.
Aquele grande Senhor que de tudo é sabedor
tudo sabe, tudo vê, tudo tem de sua mão.
todos aqueles e aquelas que comigo tratem
o Senhor lhe bote a sua bênção e me dê
amparo bom
de sua santa e bendita mão. Amén.
in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)
Os autores
Maria Fernanda Guimarães é investigadora na área dos
estudos sefarditas, nomeadamente das comunidades de criptojudeus transmontanas.
Colaboradora da Catedra de
Estudos Sefarditas “Alberto
Benveniste”, desde as suas primeiras
actividades, tendo contribuído com
investigação para o “Dicionário Histórico dos Sefarditas Portugueses –
Mercadores e Gente de Trato – Direcção Cientifica A.A. Marques de Almeida
- Campo da Comunicação – 2009.
Colaboradora, na área da investigação, na construção do “Genome Project” da
família do Arquitecto canadiano
Richard George Henriques.
Colabora, na área da
investigação, para Quinzenário “Terra Quente” onde é responsável
pela página “Entre o Cristianismo e o Judaísmo” desde 1999.
António Júlio Andrade nasceu em Felgueiras, concelho de Torre de
Moncorvo em 10.12.1947, no seio de uma família modesta de lavradores. Estudou
nos seminários de Vinhais, Bragança e Braga onde concluiu o 2º ano de teologia.
Em Outubro de 1969 iniciou a vida de professor no colégio Campos Monteiro,
matriculando-se no curso de filosofia da universidade do Porto, como estudante
trabalhador. Vida interrompida para cumprir o serviço militar obrigatório em
Mafra, Lamego e Funchal, antes de embarcar para o Norte de Angola onde serviu
como alferes miliciano durante 2 anos, com louvor do comandante da Região
Militar. De regresso a Trás-os-Montes, retomou a vida de professor provisório
do ensino secundário, desenvolvendo em paralelo actividades nos campos sindical
e político, com incursões no jornalismo. Depois de uma breve passagem pelo
centro de documentação da Ferrominas EP, entrou para os quadros da câmara municipal
de Torre de Moncorvo como funcionário e ali continua como técnico especialista
na Biblioteca Municipal. De 1997
a 2005, foi director do jornal Terra Quente, quinzenário
onde, em parceria com Fernanda Guimarães, continua assegurando a publicação
regular de uma página dedicada ao estudo dos judeus e marranos do Nordeste
Trasmontano, iniciada no ano de 2000 De parceria com a mesma investigadora tem
publicado diversos trabalhos, em várias revistas e colectâneas, bem como os
seguintes livros:
* Subsídios para a História da
Inquisição em Torre de Moncorvo.
* Carção Capital do marranismo.
* Jacob de Castro Sarmento.
* A Tormenta dos Mogadouro na
Inquisição de Lisboa.
No ano de 1987 foi o vencedor
nacional dos prémios Ford de conservação da natureza e do património cultural,
patrocinados pelas secretarias de estado do ambiente e da cultura, com um
projecto de salvaguarda e recuperação de um lagar comunitário da cera existente
na sua aldeia natal. E sobre a sua aldeia e o seu concelho, publicou vários
trabalhos monográficos, nomeadamente:
* Conhecer Felgueiras.
* Boletim da Comissão de Festas
de Santa Eufémia – 4 edições.
* Torre de Moncorvo Notas
Toponímicas
* Quadros Militares da História
de Moncorvo.
* Arquitectos, Mestres de Obras e
Outros Construtores da Vila de Moncorvo.
* Torre de Moncorvo (1890 – 1905)
Vida Política, Cultural e Recreativa.
* História Política de Torre de
Moncorvo 1890 – 1926.
Trabalhos
dos autores
Caminhos
Nordestinos de Judeus e Marranos – página do Jornal Terra Quente de
Mirandela desde 15-04-1999.
Rota
dos Judeus
– A Voz do Nordeste de Bragança.
Poderá
a Fenix Renascer? Contributo para definição de uma “Rota de Judeus” no Nordeste
Transmontano – Tese apresentada ao III
Congresso Transmontano – Bragança- 2002
Percursos de Francisco Lopes Pereira e Gaspar Lopes
Pereira, cristãos-novos de Mogadouro – Caderno de Estudos Sefarditas, n.º 5 2005 – Cátedra de Estudos
Sefarditas “Alberto Benveniste” – Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa.
O Dr.
Francisco da Fonseca Henriques e a sua família na Inquisição de Lisboa - Brigantia –
Revista de Cultura – Volume de homenagem ao Dr. Belarmino Afonso – 2006.
Subsídios
para a História da Inquisição de Torre de Moncorvo – Câmara Municipal
de Torre de Moncorvo 2007.
Os
Távoras e os cristãos-novos no progresso de Mirandela - Actas da IX Jornadas Culturais de Balsamão - Centro Cultural de Balsamão
2007.
Carção
– Capital do Marranismo – Edição da Associação Cultural dos Almocreves de
Carção – Associação CARAmigo – Junta freguesia de Carção – Câmara Municipal de
Vimioso – 2008.
Contribuição
dos judeus e cristãos-novos no progresso de Vila Flor – Retalhos da
História de Vila Flor – XI Jornadas
Culturais de Balsamão – 4 de Outubro de 2008.
A
Tormenta dos Mogadouro na Inquisição de Lisboa – Editora Nova
Veja – Lisboa – Câmara Municipal de Mogadouro – 2009.
Jorge
Lopes Henriques de Carção e alguns
familiares processados pela Inquisição. – Revista Almocreve - Edição da Associação Cultural dos
Almocreves de Carção 2009.
Entre
a Sede da Inquisição e o Convento das Portas do Céu de Telheiras – Cadernos
Culturais de Telheiras , 2.ª série, n.º2 Novembro de 2009.
Notas
para um Catecismo Marrano - – Revista
Almocreve - Edição da Associação
Cultural dos Almocreves de Carção 2010 .
Tefillah
cotidiano – Um caderno de Orações marranas
- Cadernos Culturais de Telheiras
, 2.ª série, n.º 2 Novembro de 2010.
A
aguardar publicação
Os
Isidro – Uma família de cristãos-novos de Torre de Moncorvo.
Os
Almeida Castro - Uma família de cristãos-novos de Izeda.
Quintela
de Lampaças - Uma missa judaica.
Vimioso
anos de 1650 – Uma rede de passadores de judeus
desmantelada pela Inquisição de
Coimbra – II Jornadas de História Local – “Judaísmo e Marranismo. Duas faces de uma identidade” – Câmara Municipal de
Vimioso – Maio de 2009.
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