sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O Paradigma da Nossa Identidade Cultural

A música é um dos elementos que mais define, determina e diferencia os povos entre si, sendo, sem dúvida, uma parte importante a sua cultura.
São principalmente os que gravitam no mundo dos gabinetes universitários que pensam que a música tradicional é um fenómeno estático, fossilizado e  incapaz de sofrer transformações. Para essas pessoas, a música tradicional passa pela sua interpretação, sem dar lugar à criatividade. Também alguns daqueles dos que estão mais relacionados com a cultura tradicional limitam-se à sua interpretação pura e defendem a fidelidade e a pureza da versão autêntica. Felizmente,  ainda existem os que pensam que a cultura tradicional dos povos não é algo que, tendo surgido num dado momento da História e de maneira individual, se repita de forma invariável. Esta foi transmitida directamente de geração em geração, dentro da comunidade, ou da própria família. Na sua formação tomaram parte, em maior ou menor medida, cada uma das novas gerações, dando origem ao aparecimento de novas matizes culturais.
Os que se dispõem a abandonar o “conforto” da urbe e “palmilham” os caminhos da verdadeira recolha e compilação dos cantos e melodias tradicionais são peremptórios em afirmar que a música tradicional é, em muitos casos, um fenómeno vivo e em contínua evolução. A mesma melodia, ou canção, modifica-se ao ser recolhida em diferentes lugares de uma mesma região, ao ser cantada por jovens ou por pessoas mais idosas, apresenta até nuances conforme a sua versão (cantada ou instrumentalizada).
As culturas tradicionais sempre foram fenómenos abertos, e influenciaram-se, reciprocamente, nas suas relações, através da história.
Fra Angelico, Detail of the Lianailuoli Tabernacle
1433, Florence, Museo di San Marco
Actualmente, toda a comunicação é recebida por outras vias (escrita, radiofónica, televisiva, online), tornando-se muito mais abrangente e em maior quantidade, sem conhecer as  fronteiras do seu próprio país. Estas serão algumas das razões que deram origem ao facto das formas estéticas serem cada vez mais uniformes e que a participação activa e directa do povo, na música, seja menor. Assim, se justifica que, nos últimos tempos, se tenham perdido tantas das particularidades da música tradicional e se tenha, por assim dizer, provocado um retrocesso do património popular. O mesmo acontece com a língua e com a escrita, sendo os regionalismos cada vez mais relegados para um segundo grau de importância. E, a pouco e pouco, nasce uma cultura globalizada, que desvaloriza ou apaga as idiossincrasias de cada nação.
Cada vez mais os regionalismos deixam de ser tão evidentes para darem lugar a uma língua, também ela, globalizada.
Numa época em que a sociedade se torna cada vez mais global, quer nos aspectos culturais, económicos, sociais e até mesmo políticos, é premente que a nossa identidade cultural não se perca nem desvirtue. Não é novidade que o Litoral continua a ser o grande meio impulsionador de uma cultura mais efémera e que a maior parte das vezes não se identifica com as nossas verdadeiras raízes culturais. Essas ainda as podemos encontrar, ainda vivas, no nosso país interior.
É no mundo rural que reside a base de sustentação desta cultura, que nos meios urbanos é vista de uma forma mais intelectual e elitista, mas a sua divulgação é escassa ou quase nula.
Em matéria de cultura, as nossas regiões não se podem considerar desfavorecidas, uma vez que são depositárias de histórias e de tradições construídas ao longo de gerações de homens e de mulheres, mantendo viva a sua identidade própria.
No entanto, para permitir uma tomada de consciência do valor da tradição e da necessidade de preservá-la, é essencial proceder a uma vasta divulgação dos elementos constitutivos deste património cultural.
Nos dias de hoje, em que tanto se fala na região do Douro como Património Mundial, é altura de pensar que a música tradicional desta região, enquanto constituinte de manifestações da criatividade intelectual, individual ou colectiva, merece beneficiar de uma protecção que se inspire na que é dada às produções intelectuais. Tal atitude  revela-se indispensável para desenvolver, perpetuar e divulgar, ainda mais, este património, simultaneamente no País e no estrangeiro, sem atentar contra os interesses legítimos envolvidos.
Curiosamente, Portugal é dos poucos países da União Europeia que não reconhece a música tradicional como algo de importante e que mereça um estudo mais aprofundado. A comprová-lo está o facto de não existir nenhum curso oficial quer nos Conservatórios, quer no Ensino Universitário, dedicado ao ensino dos instrumentos musicais tradicionais, caso da gaita-de-foles, do cavaquinho, da braguesa, da toeira, da campaniça e da própria guitarra portuguesa. É no Associativismo que podemos encontrar a grande escola, e, consequentemente, o pilar da conservação e difusão de uma forma cultural que é, sem dúvida, uma das formas mais ricas da nossa identidade cultural.
Portanto, não é de estranhar que, nos poucos estudos académicos sobre o assunto, se possa concluir que nas grandes cidades, a música tradicional portuguesa não consta das preferências dos seus habitantes. Obviamente, que o interesse por este tipo de música dos meios de comunicação, quer seja a rádio ou mesmo a televisão, é quase nulo como se houvesse um complexo motivado pela suposta escassa qualidade da música tradicional/popular.
Provavelmente, o poder central devia estar mais atento a este tipo de fenómenos, pois, para além da sua importância pedagógica e social, poderia levar milhares de jovens a conhecer um Interior que também é seu. Podemos afirmar que, tendo em conta os poucos projectos existentes, estes, são excelentes meio de criação de sinergismos de desenvolvimento e sustentabilidade, capazes de suster a tão preocupante desertificação que o Estado diz querer resolver, mas na realidade nada fazer.
O problema que podemos colocar é o de como se poderá afirmar e defender uma cultura tradicional num quadro de grande envelhecimento da população e de analfabetismo, com a consequente passividade que ambos implicam.
É óbvio que se o património musical fosse visto de uma forma diferente por parte do Estado, poderíamos ter um Interior profissionalmente mais apelativo para os jovens. Esse investimento passaria, a saber:
            - criação de novos cursos superiores dedicados ao estudo específico dos instrumentos musicais tradicionais portugueses;
            - criação de pequenos museus regionais, onde a comunidade, em especial os jovens, possa, não só observar os diferentes tipos de instrumentos, mas também ouvir pequenos concertos, que demonstrem as capacidades melódicas e harmónicas dos mesmos. Concertos que poderiam ser uma forma de incentivar os diferentes grupos da região e dar mesmo lugar a intercâmbio entre diversos grupos musicais de várias regiões;
            - promover, quer nas escolas do ensino regular, quer nas escolas de ensino artístico, “workshops” de construção de instrumentos tradicionais;
            - implementação de pequenas indústrias de instrumentos tradicionais, que poderiam ser estimuladas por Associações Culturais ou Autarquias, mas de iniciativa privada;
            - maior divulgação, por parte dos meios de comunicação locais, regionais e nacionais da nossa música tradicional.
É imperioso que os jovens reconheçam que muita da música que ouvem tem as suas raízes nas formas folclóricas celtas e em fórmulas mais elementares da sua cultura, utilizadas num passado ainda pouco distante e, por isso, susceptíveis de  serem renovadas, ampliadas e reelaboradas pelas novas gerações.
Por outro lado, é lícito perguntar se será justo, em nome da preservação e da defesa da cultura de determinada comunidade, dos seus hábitos e dos seus valores, impedir o acesso das pessoas que a constituem aos bens que outras comunidades já adoptaram e utilizam como seus.
Não poderemos olhar cândida e nostalgicamente para o passado, recusando o futuro, assim como, em nome deste, rejeitar o passado como se houvesse uma incompatibilidade absoluta entre eles.
José António de Matos Esteves das Neves

in Trás-os Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)

O autor

José António de Matos Esteves das Neves nasceu no Porto em 1959 e reside em Vila Real. É Licenciado em Educação Musical, Mestre em Instrumentos e Técnicas ao Apoio do Desenvolvimento Rural pela UTAD, Mestre em Didáctica da Música pela Universidade de Vigo, Doutorando em Didáctica da Música na Universidade de Trás os Montes e Alto Douro e Formador para as áreas da Educação Musical, Animação Cultural e Análise de Projectos Educativos. Frequentou cursos específicos nas Universidades de Navarra e Complutense de Madrid.  Sócio fundador e membro da Direcção do Grupo Recreativo e Cultural “A Voz do Campo”, onde fundou a Tuna que dirigiu durante 10 anos. Colaborou com a Orquestra do Norte como consultor pedagógico exerceu o cargo de Assessor para as áreas da Música e Dança na Delegação Regional de Cultura do Norte, e Assessor da Câmara Municipal de Vila Real onde  foi responsável pela criação e elaboração do projecto do Conservatório de Música, objectivo que é atingido em 2004. É, desde então Director Executivo da Fundação Comendador Manuel Correia Botelho, e membro da Direcção Pedagógica do Conservatório Regional de Música de Vila Real. É professor universitário na UTAD e no Instituto Superior Estudos Intradisciplinares - Mirandela. Possui ainda uma vastíssima obra editada, quer literária (ensaios etnográficos, de música popular, etc) quer musical, onde se destaca a composição de várias obras e colaboração em discos, programas de rádio e televisão. É membro da Sociedade Portuguesa de Autores.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Arruaceiros incendeiam autocarro da Carris no Zambujal, Amadora

E para quem andava para aí a apregoar Portugal como país seguro, manipulando notícias e relatórios, os recentes acontecimentos no bairro do ...