sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

O Ulisses de Maquiavel

Qualquer comentador que aborde a obra de Maquiavel, não deixa de considerar que a teoria politica moderna nasce com o escritor italiano. E isto porque, embora reconheçam que não desenvolveu uma teoria do Estado, não deixam de lhe reconhecer o mérito de ter exposto o que realmente representa a politica. E são unânimes em reconhecer que para Maquiavel a arte da política significa uma única coisa: conservar o poder. Separando, assim, a politica da moral. Concepção que escandalizou os seus contemporâneos, pois ilustrados nos clássicos, esperavam de um soberano determinadas “virtudes”, como a inteligência, a força e o comedimento.
Na verdade, na sua obra O Príncipe, Maquiavel reflectiu sobre a fórmula da manutenção de um poder estável. E concluiu que toda a acção politica deve estar orientada para a conquista e conservação do poder. Para atingir esse fim, qualquer meio é válido. O príncipe não deve ser bondoso se a situação o exigir, porque é necessário actuar de forma imoral com muito mais frequência do que o contrário. Provocando a consternação dos seus contemporâneos, escreveu: “..um príncipe, pelo menos aquele que aceder pela primeira vez ao poder, não deve proceder de acordo com o que as pessoas consideram correcto, pois em muitas ocasiões ver-se-á obrigado – a fim de assegurar o poder – a agir contra a lealdade, a misericórdia, a compaixão e a religião”. Ou seja, o contrário daquilo que a tradição atribui a um governante: as virtudes cardeais; sabedoria, equidade, força e temperança.
O príncipe não deve preocupar-se com a opinião do seu povo, deve dominar a arte da dissimulação, sabendo agir sem escrúpulos, sendo hipócrita, sabendo mentir, negar e faltar à sua palavra[1].
Maquiavel conhecia os clássicos. Dos gregos faz referência a Aristóteles, mas insiste mais nos romanos Tito Lívio e Políbio. Uma das questões suscitadas pela perspectiva de relacionar o poder com os seus objectivos, diz-nos Adriano Moreira num belo ensaio sobre a obra de Maquiavel[2]: “é a de saber como se diferencia dos grandes mestres clássicos, designadamente de Aristóteles e Platão…”. Na verdade, no livro V da Politica[3], Aristóteles aconselha os déspotas sobre os métodos destinados a manter o poder, tema que aborda consistentemente no Capitulo XI. É frio e científico: morte aos homens de espírito, espionagem, dividir para reinar, desconfiar dos apoiantes, sem descurar desenvolver uma imagem que inspire louvor da parte dos cidadãos.
Contudo, o Professor faz a destrinça entre o politico italiano e Platão[4] e Aristóteles. Este deduz a Politica da Ética e aquele afadiga-se “na busca da justiça e do Estado que a realize”[5]. Já Maquiavel, diz o Professor “tem como objectivo o triunfo, sem cuidar da origem e necessidade do Estado…”.
Tendo em vista estas considerações, a originalidade de Maquiavel começa a ser dúbia. Aos romanos foi buscar ideias parciais (talvez porque os tinha mais à mão), na medida em que eles também se fundamentaram nos Gregos.
Mas serão Aristóteles e Platão os seus mestres? Talvez. Mas inclinamo-nos para que tenha sido seduzido por Sófocles. Pela sua impressionante tragédia, Filoctetes, e por um dos seus três personagens principais: Ulisses
Quais são as ideias principais do Príncipe? A conquista e conservação do poder a qualquer custo, sendo válido qualquer meio.
Em síntese, o que nos conta a tragédia de Sófocles? A história de Filoctetes, um homem abandonado que a solidão e o sofrimento endureceram, sem lhe destruírem a sensibilidade. E Ulisses, o politico sem escrúpulos morais que age pelo oportunismo e interesse e utiliza quaisquer meios para conseguir os seus objectivos[6]. Avalia as coisas de acordo com o interesse pessoal ou do grupo que representa.
Abordemos então algumas passagens da tragédia. Perante a estranheza de Neoptólemo, que considera uma desonra mentir para alcançar determinados fins, Ulisses apressa-se a responder que não há desonra “se a mentira nos traz a salvação” (v.109). E acrescenta depois da estupefacção de Neoptólemo: “Quando se age para nosso interesse, não se deve hesitar” (v. 111). Quando Neoptólemo recusa aderir ao plano, diz-lhe: “… entre os mortais, são as palavras, e não as acções, que conduzem tudo” (v. 99). E dirige-lhe conselhos sub-reptícios: “Eu sei, meu filho, que não é da tua natureza falar assim, nem tecer armadilhas. Mas tem coragem, porque é agradável alcançar a vitória. Depois disto se verá outra vez a nossa justiça. Agora põe-te ao meu dispor pelo curto espaço de um dia, para agir sem escrúpulos: depois, durante o resto da vida, podem considerar-te o mais honesto de todos os mortais” (vv. 79-85).
São palavras capciosas e sofísticas de quem põe os seus interesses acima de tudo. Ele próprio se apresenta como a pessoa que a circunstância exige (v. 1049). Sem escrúpulos de moral, justiça ou honestidade. Apenas as circunstâncias do momento norteiam a sua actuação. Ulisses é, assim, o símbolo do poder injusto e tirânico, que tritura e reduz quem apanha no caminho e se lhe opõe. A vontade das pessoas não conta. São obrigadas a obedecer e a submeter-se. Ulisses não recua perante a falsidade, a traição e a violência. Para persuadir Filoctetes (Cujo abandono injusto na ilha de Lemmos tinha sido, em parte, da sua responsabilidade), agiu traiçoeiramente, pelo engano, pela mentira e pela intriga. A justificar todos os seus actos invoca o interesse e a utilidade, chama a razão de Estado, (vv. 989-990). E sabe explorar o desejo de fama do jovem  Neoptólemo, demonstrando-lhe com argumentação capciosa que só pela astúcia seria possível levar Filoctetes a embarcar (vv. 107-116). É já Neoptólemo que conclui: “Temos então de o apanhar, se assim é” (v. 116) e acrescenta: “Seja. Assim farei, pondo de lado qualquer escrúpulo” (v.120).
Porém, no confronto dos três personagens, assistimos à vitória da justiça, seja através da derrota total dos que usam da injustiça, quer através da recompensa dos deuses a Filacteto.
Apetece dizer que os gregos já disseram tudo e como o filósofo A. N. Whitehead, observar que toda a filosofia ocidental mais não é do que um conjunto de notas de rodapé a Platão.
Armando Palavras

Post-scriptum
Sófocles é o trágico mais citado na Poética de Aristóteles, que frequentes vezes o aponta como modelo quanto ao modo de estruturar os acontecimentos para fazer sentir o temor e a compaixão essenciais ao trágico. Sófocles representava os homens “como deviam ser”, e não como eram, à maneira de Eurípides; e pertenciam-lhe inovações como a introdução do terceiro actor e da cenografia.


[1] No campo da literatura o exemplo clássico do príncipe que aprendeu esta lição é o do príncipe Henrique, personagem de Henrique IV do drama histórico de Shakespeare
[2] MOREIRA, Adriano, Nicolas Machiavel, O Príncipe, in: 10 Livros que Mudaram o Mundo, Quasi, 2005, pp.17-24.
[3] Cf. ARISTÓTELES, Politica, Ed. Bilingue, Veja, 1998.
[4] Cf. PLATÃO, A República, Fundação Calouste Gulbenkian, 9ª ed. 2001.
[5] Embora no Livro II da República, coloque na boca de Glaucon palavras de pouca esperança no destino dos governantes justos, assumindo pessoalmente o uso da mentira real, uma senda incoerente para que deste modo os cidadãos se mantenham felizes com as circunstâncias do governo.
[6] O terceiro personagem, Neoptólemo, é um jovem ingénuo, bom e generoso, que aprende com as situações embaraçosas, e sofre uma visível transformação psicológica.

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