quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

CSI UTAD: Investigando causas de morte


26 de Setembro de 1988. Cheguei à UTAD, recém-licenciada em Medicina Veterinária na Escola Superior de Medicina Veterinária (ESMV - Lisboa). Canudo na mão, o mundo que se abria diante de mim…eu ávida de começar a trabalhar, mostrar aquilo de que era capaz, agora Médica Veterinária e após ter passado por um estágio em virologia com o saudoso Dr. Vigário no Laboratório Nacional de Investigação Veterinária (LNIV). Por lá aproveitei para conhecer melhor o trabalho dos patologistas veterinários Prof. Nunes Petisca e Prof. Manuel Lage, cujo trabalho muito me marcou.
Regressada ao Norte, agora para ficar e encontrar o meu nicho, entrei na jovem UTAD, ainda pequena mas já fervilhando de actividades, no então Departamento de Higiene e Sanidade. O meu propósito? Leccionar no recém-criado curso de Medicina Veterinária (que estava no 2º ano) a disciplina de Histologia. Mas logo fui recrutada para leccionar várias outras disciplinas afins, como era frequente acontecer nessa altura, estendendo a minha leccionação também à Engenharia Zootécnica. Foi no entanto na Patologia Geral, caída nos meus braços em Janeiro de 1989, que me mantive até hoje, e fiz a maior parte da minha carreira académica.
Numa Universidade jovem e em expansão, comecei por ter o meu gabinete no recém-inaugurado edifício de Ciências Agrárias, onde fui ainda encontrar um rudimentar laboratório (o embrião da estrutura que é hoje) com apenas uma estufa e um micrótomo de Minot, velho e desafinado, mas manipulado com mestria pela Técnica Lígia Lourenço, que com todo o seu brio e profissionalismo parecia trabalhar num equipamento topo de gama.
Talvez em função da minha juventude e de ter estagiado com os Mestres em Lisboa, as necrópsias foram colocadas a meu cargo. Assim, sempre que necessário, após a morte de um animal competia-me a mim avaliar a causa do sucedido. Deste modo, em vésperas de 1990, nascia de forma espontânea, não oficial e quiçá ingenuamente, o serviço de necrópsias da UTAD. Hoje, por comparação ao que nos é apresentado nos meios de comunicação, poderíamos chamar-lhe o serviço de “CSI”, pois o objectivo deste procedimento médico é o exame do cadáver para determinar a causa e o modo de morte assim como a presença de ferimentos ou doença nos animais.
Actualmente o serviço de necrópsias está integrado na actividade médica de Anatomia Patológica, prestada pelo Laboratório de Histologia e Anatomia Patológica (LHAP), que iniciou oficialmente a sua função em Setembro de 1988. Na equipa que integra este Laboratório, e que tem crescido ao longo do tempo, contamos com a participação de diversos colegas, uns vindos da casa-mãe, a ESMV (actualmente Faculdade de Medicina Veterinária), como as Professoras Anabela Alves e Paula Rodrigues, mas na sua maioria colegas formadas por nós, como as Professoras Fernanda Seixas, Isabel Pires, Justina Oliveira, Maria de Lurdes Pinto e Adelina Gama. Por aqui passaram também antigos alunos nossos, que saíram para liderar laboratórios similares noutras instituições, como é o caso da colega Helena Vala. No grupo, mais vocacionada para a área de morfo-fisiologia, contamos ainda com a Prof. Ana Margarida Calado.
Palácio de Mateus - Vila Real
Esta estrutura integra ainda alguns técnicos e operacionais. Além da Lígia, que está associada ao LHAP desde a sua origem, e que com a sua contínua necessidade de perfeição e a procura de excelência, de aprofundamento constante dos seus conhecimentos a tornam cobiçada e um elemento primordial no desempenho das funções desta estrutura, fazem também parte da equipa do laboratório a Dª Ana Plácido e a Dª Glória Milagre que são indispensáveis ao bom funcionamento do serviço.
Visto mais de perto, poderíamos afirmar que o Laboratório pelo qual sou responsável é um reino feminino, qual colmeia enxameando de abelhas que diligentemente vão dando provas da sua capacidade técnica e científica, indiferentes às diversidades da sua origem, na sua génese e na sua especialização. Somos agora chamadas com regularidade a intervir na vida científica nesta área específica do conhecimento, tanto a nível nacional como internacional, modo pelo qual a qualidade do nosso trabalho nos é reconhecida. Mas as histórias mais divertidas encontram-se na origem do Serviço de Anatomia Patológica, enquanto éramos mais jovens e pouco experientes… e em que muitas vezes nos valeram os conselhos dos nossos Tutores, os Professores Manuel Lage (meu antigo professor na ESMV e do LNIV de Lisboa) e Manuel Azevedo Ramos (do LNIV do Porto), que por várias vezes se deslocavam à UTAD para nos orientar no inicio de árdua tarefa de iniciar um curso de novo. E, claro está, não podemos esquecer o Dr. Pedro Roquete, anatomopatologista do Hospital de Vila Real. Com o seu ensino, entremeado da paciência e amizade com que sempre nos distinguiu, foi o Dr. Pedro que nos ensinou a “arte” do anatomopatologista, o seu rigor que nos levou a caminhar no sentido do sucesso nesta área. O seu empenho, disponibilidade, abnegação e sobretudo paciência, ensinaram-nos a crescer. Com estes Conselheiros, nasceu e cresceu o serviço tal como ele é na actualidade.
Assim, é a nós que cabe responder às perguntas dos proprietários dos animais ou aos colegas que nos remetem uma análise: de que morreu o animal? Qual o diagnóstico para esta ferida? Que lesão é esta na pele do meu cão? Este tumor é muito grave? Que prognóstico posso dar a este caso? É também este aspecto que mais entusiasma os mais novos, os nosso alunos, quando vêm ter connosco para fazer de “detective” e perceber a causa da morte de um animal, ou perceber como chegamos a um diagnóstico histopatológico... tudo que leva muito mais tempo do que possa parecer num mero episódio do CSI Miami... Mas, também é esta actividade que tem episódios agradáveis de recordar.
Dois cabritos nascidos no Alvão estiveram entre as primeiras necrópsias que me lembro de ter feito. Os pastores, donos destes animais, contavam com uma grande mortalidade no seu rebanho e queriam saber o que fazer. Nessa altura, a única instalação de que dispunha era o pequeno laboratório no edifício de Ciências Agrárias, pelo que foram levados lá. Quando cheguei para fazer a necrópsia, o laboratório estava em grande alvoroço, e o saco com os animais, à porta. Pelos vistos, os animais traziam pulgas que, com o arrefecimento dos corpos após a morte, procuravam outro ser vivo para se alimentarem... e escolheram uma técnica que andava sempre muito bem arranjada do laboratório de microbiologia, e que tinha o cabelo sempre muito bem armado, estilo Marge Simpson...
De outra vez, trouxeram-nos uma galinha para tentarmos saber o porquê das mortes no grupo… mas esqueceram-se de a trazer morta! Ainda viva, embora um pouco fraca, cacarejando de um lado para o outro lá ia passeando no laboratório; não havia voluntários para a matar, mas sem estar morta não se podia determinar a razão de tantos animais do mesmo grupo estarem a morrer... eu lembrei-me como a minha mãe fazia este serviço e da sua mestria, habitual que era na nossa zona ter galinhas e em casa ter de as matar, depenar e meter no tacho, achando por isso que deveria ser de fácil execução. No entanto, faltaram-me a faca afiada e o jeito, de forma que a galinha meio degolada resolveu fugir-me das mãos e transformar um laboratório de paredes brancas num filme de terror...
Outro episódio caricato, ocorreu numa das visitas do Prof. Lage e do colega Azevedo Ramos, no início de um Inverno. Em casa de um agricultor havia uma vaca para necrópsia, cuja morte repentina tinha levantado suspeitas. Resolvemos fazer esse serviço ainda antes de cair a noite. No entanto, era Novembro, e às 16 horas não se via grande coisa no quinteiro onde a vaca fora depositada. Com a ajuda do colega clínico Carlos Pinto e a companhia dos colegas visitantes senti-me segura do resultado dessa enorme tarefa, pois teria quem me ajudasse. Como já referi, chegámos ao local no final da tarde, dispondo apenas de uma mísera lâmpada de umas “25 velas”, como diziam na aldeia, a alumiar o local em que se encontrava o animal. Já para não falar do material cortante (vulgares faca e tesouras...) que pareciam o refugo de outras vidas em que apenas cortariam a manteiga no verão transmontano. Mas ainda assim cumprimos a nossa tarefa. Vendo o fraco gume, e como sempre despachada no momento de intervir, tratei de afiar aquelas lâminas, pondo em prática os ensinamentos do meu pai, lâmina contra lâmina, de cima para baixo e quase da esquerda para a direita, zup-zup-zup, lá comecei a afiá-las até que as considerei “no ponto”. Dediquei-me então à tarefa árdua de abrir um animal com mais de 10 vezes o meu peso e teso que nem carapau devido ao rigor mortis. Nessa altura, reparei que o Prof. Lage e o colega Azevedo Ramos teciam comentários entre si e para os presentes, mas no meu esforço de querer despachar trabalho, não me dei conta do que diziam. Só mais tarde, em Lisboa, num dos primeiros encontros da Sociedade Portuguesa de Patologia Animal, ouvi o Prof. Lage comentar junto de colegas de outras instituições, e de modo exuberante, a forma como me “lancei” a uma vaca: “pega em duas facas e com agilidade afia uma na outra, depois salta para dentro da vaca e em três tempos faz a necrópsia.” Exagero da sua parte, mas que impressiona quem o ouve! Obrigada professor, pela sua amizade e orientação!
Com muito esforço e persistência lá fomos conseguindo pequenas vitórias junto da reitoria para melhorar as nossas condições de trabalho, permitindo o crescimento do Serviço que prestamos à comunidade. Finalmente, eis que nos é entregue uma pequena estrutura que funcionaria ainda durante algum tempo (até à construção do Hospital Veterinário) como sala de necrópsias. E esta casinha foi palco de mais uma peripécia. Era Agosto. Na UTAD estávamos em pleno período de férias, pois é neste mês em que tradicionalmente o corpo docente o pode fazer. Neste mês, a UTAD esvazia-se de alunos e docentes… parece estar “às moscas”. Nesse ano, só aqueles que tinham de preparar provas académicas ficaram por lá nalgum tempo. Tendo-me foi concedida licença para fazer o Mestrado de Imunologia no ICBAS, Universidade do Porto, e estando eu fora grande parte da semana em período académico, comprometi-me e estar disponível durante o mês de Agosto, apresentando-me ao Serviço caso fossem necessários os meus préstimos. Num desses dias, apareceu um produtor de ovinos que se queixava de lhe estarem a morrer muitos animais no seu rebanho, alguns sem sintomas, outros a “andar à roda e a marrar contra a parede”. Como alguns dos animais tinham sido comprados à Universidade e eram geneticamente valiosos, foi-lhe recomendado que quando tivesse um animal muito mal, quase a morrer, o trouxesse para se fazer a necrópsia, mas que o trouxesse no próprio dia da morte ou ainda moribundo, pois com o calor que estava se estivesse morto desde o dia anterior de nada serviria, uma vez que a putrefacção mascararia qualquer lesão. Entenda-se que era esperado que o animal chegasse morto! Um ou dois dias depois avisaram-me que o dito produtor passara por lá a deixar um dos carneiros reprodutores, que estava às portas da morte. Marquei a necrópsia para o início da tarde, aproveitando a ajuda da colega Rita Payan, que também tinha ficado pela UTAD, e que seria uma boa ajuda de braços, pois sozinha demoraria muito mais a fazer a necrópsia. Habitualmente, o nosso equipamento para este serviço inclui galochas, uma bata ou fato de macaco, um avental e luvas, que nos permitem proteger a roupa que se traga vestida. A Rita nesse dia trazia uma indumentária fresca e leve, como o dia quente recomendava. Vestia de branco, com uma casaquinha alinhada às flores a condizer com as sabrinas, do mesmo material. Teimosa como sempre, decidiu que não iria precisar de vestir mais nada, pois se o animal já estava morto e eu faria a maior parte do serviço, a sua acção seria mais de fotógrafa do que ajudante. Chegadas à casinha, olhámos para as mesas e… nada! Olhando para os cantos da sala, num deles vimos não o moribundo que, na ausência de cadáver, nos tinha sido prometido, mas um carneiro reprodutor com um belo par de cornos e com um aspecto bem fresquinho. De imediato fechámos a porta, e do lado de fora conferenciámos para delinear estratégia (até parecia que receávamos que o bicho nos ouvisse!). Teríamos de eutanasiar o animal com os escassos meios que tínhamos disponíveis no momento, para o que contávamos apenas com um velho escopo que poderia ser utilizado para o insensibilizar. Em alternativa, poderíamos ficar à espera que o animal morresse pelos seus próprios meios. Rapariga expedita, a Rita arregaçou as mangas e decidiu que, tendo alguma experiência, teria mais facilidade em executar a tarefa (tinha trabalhado um ano no matadouro local), pelo que entrámos de novo. Sem se preocupar com a indumentária, adepta de que tudo se pode lavar, ou não vale a pena comprar, lá avançámos nós a encostar o animal a um canto da sala. Sentindo-se encurralado, o carneiro faz das tripas coração e resolve investir contra nós! Rico moribundo que nos tinham deixado! Enfim, depois de uma pega de caras, com algum esforço e suor (o animal ainda conseguia empurrar-nos às duas de um lado para outro, com a nossa falta de prática e de força em conter um animal desta espécie), a Rita lá conseguiu fazer a insensibilização sem grande sofrimento para o animal e a necrópsia foi feita, mas nunca mais aquelas sabrinas voltaram a combinar fosse com que farpela fosse… De referir que era um parasita alojado no cérebro a causa de todo o problema nesse rebanho.
Assim, vos mostro um pouco deste grupo, o “CSI UTAD”. Com o tempo fomos crescendo em saber e prática. Com condições de trabalho melhores, as situações caricatas vão-se reduzindo. Estas histórias que aqui vos deixo vão sendo recordadas em reuniões ou serões, às vezes com alguma incredulidade, como quem diz… seria mesmo possível termos trabalhado naquelas condições? Na razão inversa, a nossa implantação nesta área aumenta. No entanto, não conseguimos ter a projecção do nosso homónimo de Los Angeles ou Miami, nem conseguimos determinar com toda a certeza a causa de morte de todos os casos que nos surgem, pois nem sempre isso está ao nosso alcance, mas somos reais, da UTAD, transmontanas e Portuguesas, com MUITO ORGULHO!!!
Agradecimentos:
Gostaria de expressar um sincero agradecimento à colega Rita Payan, ao meu marido Carlos Matos e a todo o grupo do LHAP.
in: Trás-os-Montes e Alto Douro, Mosaico de Ciência e Cultura (2011)

A autora
Maria dos Anjos Pires é Agregada (2006) e Doutorada (1998) em Ciências Veterinárias pela UTAD, Mestre em Imunologia pelo ICBAS (1993) e licenciada em Medicina Veterinária pela Fescola Superior de Medicina Veterinária (1988) de Lisboa. Docente da UTAD da área de Histopatologia (Patologia Geral, Imunologia e Teratologia) desde de 1988. Responsável pelo Laboratório de Histologia e Anatomia Patológica desde 1998, é actualmente membro do Concelho Cientifico da Escola de Ciências Agrárias e Veterinária. Como investigadora participa em vários projectos científicos da área de imunopatologia e oncobiologia animal. Organizou e pertenceu a comissões científicas de várias reuniões científicas nacionais e internacionais. Participou em mais de 60 reuniões e congressos nacionais e internacionais onde apresentou mais de 140 comunicações e posteres, mediou sessões e participou em mesas redondas, na área da Medicina Veterinária, Anatomia Patológica, Patologia Experimental e Imunologia Tem mais de 50 publicações nacionais e estrangeiras, um livro (“Atlas de Patologia Veterinária - Biopatologia”. 212 p. ISBN: 972-757-281-2 Editora Lidel, 2004) e participou em capítulos de mais dois livros internacionais. É actualmente presidente da Sociedade Portuguesa de Patologia Animal.

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