terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Aspectos de Ontem - A Sagrada Túnica de Chartres

                                       
                                                 Mestre Francke (c.1380 Hamburgo?
                                                 f.c. 1436 Hamburgo), Natividade no
                                                Altar de São Tomás Becket, Técnica
                                                mista s/carvalho, 99x89cm, Hamburger
                                                Kunsthalle, Hamburgo


Na noite de 10 de Junho de 1194, a cidade de Chartres foi surpreendida por um enorme incêndio, cujas causas se desconhecem, mas que destruiu uma grande parte da urbe, incluindo o esplêndido palácio episcopal construído pelo bispo Yves e toda a catedral à excepção da fachada ocidental.
Esta deflagração geral deixou uma impressão de terror nos seus contemporâneos. Guillaume le Breton, menciona-a tanto no seu Philippid, como na sua história do rei, tendo depois passado para a Crónica de Auxerre e daí para o celebérrimo Speculum historiale de Vincentius de Beauvais. Para lá do Canal, o registo deste incêndio é descrito na Crónica de Newbridge [a tal propósito, cf. Bulteau, M. J. Monographie de la Cathédral de Chartres, 2ª ed. Chartres, 1887-1892, 3 Vols. “Saint Fulbert et sa Cathédral” SAELM, VII (1882)].
Não é de estranhar que os habitantes de Chartres tenham ficado tão profundamente impressionados. A catedral era um dos mais venerados (se não o mais importante) relicários do Ocidente. Era o centro do culto de Maria não só em França, como em toda a Europa. Era aqui que Nossa Senhora permanecia entre o seu Povo. E a relíquia que mais peregrinos atraiu durante séculos à catedral era a túnica (Santa Túnica como era designada) ou camisa que se dizia ter a Virgem Maria usado no nascimento de Jesus.
É pois natural que os historiadores levem a sério as emoções pois fornecem o impulso sem o qual os grandes esforços colectivos são impossíveis e ininteligíveis. Nada nos surpreende pois, conhecendo o pensamento medieval, com o facto da presumível destruição da Sagrada Túnica ter ditado a condenação da cidade, considerada uma ominosa indicação de que a Virgem os tinha abandonado. A eles e à sua cidade. O incêndio era assim olhado como um sinal da ira divina. Devido aos pecados do povo. A primeira reacção foi, portanto, que seria fútil reconstruir tanto a cidade como a basílica.
Contudo, o “milagre” deu-se. A sagrada Túnica, ao contrário da crença geral, estava a salvo na cripta da catedral e tinha sobrevivido à deflagração. E o anúncio foi feito ao povo pelo cardeal Melhor de Pisa que por esse tempo estava a pernoitar na cidade. E no meio de um sermão inflamado que provocou a comoção e lágrimas, apelou à reconstrução da catedral.
O temperamento medieval era dado a mudanças súbitas, do desespero à alegria. Assim, entenderam, com a aparição da Sagrada Túnica que a Virgem pretendia que fosse construída no lugar da antiga uma catedral mais esplendorosa. Ou seja, a miraculosa recuperação da relíquia parecia ser um sinal do persistente afecto da Virgem pela cidade. Guillaume le Breton faz eco desse sentimento (Cf, SIMSON, Otto von, A Catedral Gótica, Presença, Lisboa, 1991).
Em meio século, os habitantes da cidade puseram em pé um dos mais deslumbrantes e sublimes monumentos do Gótico, que ainda hoje se pode apreciar[1]. Ou como diria Louis Charpentier (The Mysteries of Chartres Cathedral, RILKO, 1993), um templo reverenciado durante séculos como o Livro de Ouro no qual os sábios inspirados inscreveram a sua sabedoria como legado permanente para todos aqueles que procuram a verdade espiritual.
Como ontem, porque razão o Povo hoje se não suplanta? Faltar-lhe-ão razões?

Armando Palavras


[1] A Virgem Negra de Chartres, também denominada “Virgem dos Druidas”, esteve exposta, desde tempos imemoriais, na cripta da catedral. Contudo, segundo as palavras de Robert Charroux (O Livro dos Senhores do Mundo, Bertrand, Lisboa, 1999, p. 87), “foi queimada em 1792 por vândalos republicanos que pensavam vibrar assim um golpe sacrílego contra a Igreja Católica (…)”.

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