João Pedro Marques - OBSERVADOR
01 dez. 2025, 00:2065
O Brasil tem coisas
extraordinárias em áreas tão vastas e diversas que vão da culinária às artes ou
às ciências. Teve e tem, também, figuras históricas admiráveis em todos os
campos da actividade humana, de José Bonifácio a Chico Buarque. Mas ao mesmo tempo
que tem dado ao mundo coisas e gente de nível superlativo, o Brasil tem, nas
últimas décadas, exportado para esse mundo, sobretudo para Portugal, uma
irritante conversa a que podemos apropriadamente chamar queixume brasileiro. Em
que consiste esse queixume que aqui nos chega pelas vozes e mãos de artistas,
jornalistas, políticos e intelectuais sortidos residentes nesse, ou
provenientes desse, país tropical? Na acusação e culpabilização sistemáticas
dos antigos portugueses e do Portugal de há 200, 300 ou 400 anos por algumas
das dificuldades, injustiças e desequilíbrios da actual sociedade brasileira.
Essas características
do wokismo conduzem desde logo à falta de boas maneiras a que aludi acima. Tudo
no texto de Eliane Brum é extremo e violento, tudo vem carregado de acusações e
de culpabilidade. A jornalista vê a gente branca, da qual faz parte, como
“seres horrendos que corrompem o mundo”. Porém, o seu texto dá um passo mais e
avança para a ideia nazi da culpa colectiva. Brum reconhece que
“individualmente, cada português não é culpado pelo que seus antepassados fizeram.
Como seriam, se nem estavam vivos naqueles anos? Mas coletivamente, sim, são
responsáveis. Se aceitaram as benesses que vieram com o que os antepassados
fizeram, o pau-brasil e o ouro ensanguentado que construíram os seus
monumentos, as heranças coletivas, temos que aceitar coletivamente a
responsabilidade por seus assassinatos”.
Ora isto, para além de
wokista e hitleriano, é pueril. Dado que as sociedades humanas minimamente
complexas não nasceram ontem, mas sim há milénios, e que também desde há milénios
foram interagindo por meio de relações de aliança, domínio e submissão, todos
nós beneficiamos ou carecemos de milhares de coisas. A jornalista Eliane Brum,
por exemplo, beneficia do facto de ter nascido no século XX, no mundo
ocidental, e não no Afeganistão, onde a condição das mulheres é a que se sabe.
Deverá renunciar a esse benefício e emigrar para Cabul onde começará a usar
burca? E, não querendo ser tão radical, deverá despojar-se de tudo aquilo de
que usufrui ou usufruiu — das roupas que veste à comida que ingere — que tenha
sido obtido ou fabricado com alguma dose de injustiça e violência para que,
inteiramente nua e purificada, possa regressar a pé descalço ou a nado a um
passado imaginário, a um Jardim do Eden, onde não havia sombra de pecado?
É justo reconhecer que
Eliane Brum não se esquiva a esses dilemas e toma sobre si uma quota parte das
dívidas: “Eu, mulher branca, descendente de imigrantes italianos esfomeados
também carrego a minha (responsabilidade)”. Logo de seguida a jornalista assume,
também, o seu privilégio por ser branca, facto que, segundo diz, lhe permite
ter melhor educação, assistência médica, alimentação, residência, salário, ter
menos probabilidade de ser violada e assassinada, de morrer de parto e de
passar horas do seu dia “num transporte público entupido de corpos”. De forma
coerente já havia decidido militar em favor dos indígenas e ir viver para a
Amazónia, um mundo mais de acordo com o seu pensamento que enaltece as
qualidades reais ou imaginadas de ecologias extintas ou ameaçadas, e condena a
mão civilizada que as trucidou ou lhes causou dano. Mas a jornalista brasileira
não pode levar a mal que o comum dos mortais prefira viver em Nova Iorque ou em
Roma sem que essa preferência faça dele uma má pessoa ou um culpado do
esmagamento de outros modos de vida.
Nem pode também levar a
mal que lhe diga que para lá de pueril e primitivista, o seu pensamento tem
vertentes completamente absurdas. Uma delas é o nexo de causalidade que
pretende estabelecer entre as devastações e brutalidades levadas a cabo pelos
descobridores e primeiros povoadores portugueses, e o que actualmente se passa
no Brasil. Os brasileiros são inteiramente independentes há 200 anos. Repito e
sublinho: 200 anos. É quase inacreditável que haja entre eles quem, dois ou
mais séculos passados, ainda se queixe dos antigos colonizadores. Seria como
se, no Portugal de meados do século XVI, no reinado de D. João III, por
exemplo, as gentes considerassem que os problemas vividos pelos portugueses
dessa época ainda eram culpa dos tártaros que, em meados do século XIV, usando
técnicas arcaicas de guerra biológica, catapultaram cadáveres empestados para
dentro das muralhas de Cafa, na Crimeia, assim fazendo com que os genoveses,
que comerciavam com essa cidade, levassem a Peste Negra — e os ratos e as
pulgas que a propagavam — nos seus navios e a espalhassem inadvertidamente
pelos reinos europeus — Portugal incluído — onde teve efeitos catastróficos,
pois terá matado um terço ou mais da população do continente. Ou, então, seria
como se os portugueses actuais fossem a Paris barafustar e rasgar as vestes por
muito do que aconteceu em termos de perdas e danos, durante as invasões
francesas do século XIX, cujas consequências directas e indirectas acabaram por
ser terríveis para Portugal — e curiosamente muito positivas para o Brasil que
passou a ser a sede do governo, viu a abertura dos seus portos ao comércio
externo e que, a curto prazo, se tornou independente. Essas queixas portuguesas
foram resolvidas na época pelos tratados de 1814 e 1815, assim como as nossas
pendências com o Brasil foram resolvidas pelo tratado de 1825. Que passados 200
anos venha gente brasileira tecer um rol de acusações aos portugueses que por
lá andaram há séculos está entre o absurdo e o patético.
Claro que Eliane Brum pode dizer e escrever todos os disparates que lhe passarem pela cabeça e pode fazê-lo com a amargura e agressividade que quiser. Como ela mesma confessa, não separa o corpo da mente e a escrita “vem toda das (suas) entranhas”. Não é isso que inquieta. O que é preocupante é a propensão de muitos portugueses — como ainda há pouco se viu em Luanda com o próprio Presidente da República —, para assumirem e interiorizarem estas culpas ou supostas culpas históricas, mesmo quando, como é o caso do texto da jornalista brasileira, elas vêm embrulhadas no inaceitável e indefensável conceito de culpa colectiva.
Outra coisa
preocupante, pelo impacto que tem na formação da opinião pública, é a
deriva woke da Fundação Calouste Gulbenkian que, aliás, não é
de agora. Há cerca de ano e meio, a Fundação levou a cabo um curso destinado a
professores do ensino básico com os objectivos explícitos de desconstruir
“preconceitos” supostamente “enraizados na memória pública portuguesa” acerca
do “papel de Portugal no comércio de escravos” e de “apresentar abordagens
alternativas”. Para atingir esses objectivos convidou formadores do Museu
Smithsonian de História e Cultura Afro-Americana, uma instituição
claramente woke, e serviu-se, também,
da prata woke da casa, convidando entre outras pessoas, a
socióloga e activista Cristina Roldão, cujo fito de alterar o ensino e os
manuais escolares da disciplina de História num sentido flagelante e
politicamente correcto é assumido e sobejamente conhecido.
Critiquei logo na
altura essa
iniciativa da Fundação, mas a minha crítica caiu em saco roto. Renovo-a através
deste e do meu anterior artigo e deixo duas perguntas: o Conselho de Administração da Fundação Calouste Gulbenkian, actualmente presidido
por António Feijó, estará bem ciente deste rumo wokista? Será por aí que, de
facto, quer ir? A Fundação esclarecerá se assim o entender.

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