EXCERTO - LIVRO "A ÚLTIMA ESTAÇÃO DO IMPÉRIO"
... - Então, vais aparecer fardado na tua terra?
- Não. Não é possível.
- Porquê?
- Porque se entra fardado o gado não vai conhecer e acontece
coisa ruim.
- Como assim?
- Uma vez, na família, um soldado foi com farda a casa. O gado estremeceu. Morreu o gado todo.
* * *
Um dia, o Cambrunhanga comprou, ou ofereceram-lhe, um
rinoceronte bebé, justamente acabado de nascer.
Criou-o a biberão, até começar a pastar, no exterior. Para o
pastoreio, arregimentou um guarda nativo, com a particularidade de gostar da
pinga. O rinoceronte foi ganhando empatia com o pastor e tratador e, a pouco e
pouco, inverteram os papéis. Quando o guardador se tomava da pinga, muitas
vezes adormecia. Nesses casos o rinoceronte é que passava a guardar o pastor.
O rinoceronte foi crescendo e a partir de certa altura já não
era conveniente mantê-lo ali próximo da população local. O Cambrunhanga
resolveu oferecê-lo ao Jardim Zoológico de Lisboa.
O rinoceronte foi transportado de barco de Moçâmedes para
Lisboa. Para reduzir o stress do animal, o pastor e tratador acompanhou-o na
viagem e ficou cerca de seis meses a colaborar na sua adaptação à realidade
específica do Jardim Zoológico, em Lisboa.
Terminado esse período, regressou à origem. Então é que foi um
tempo de novidades. A população local tinha contacto com os brancos do
"puto», com os homens que vieram do mar como se referiam a eles, nos
primórdios das viagens marítimas. Mas não era a mesma coisa ver como eram e
viviam na sua própria terra, contado e visto por um dos seus; era a ocasião
certa de ficar a saber, de fonte limpa, como era a terra de onde vieram os
brancos.
Os curiosos chegavam de sanzalas distantes para escutar o
relato do viajado.
Contava a sua experiência, o seu dia a dia em Lisboa, o que o tinha impressionado, o que jamais teria imaginado sem ter visto.
Contava, por exemplo, que o branco não vivia numa cubata térrea,
dentro de um Kimbo, como eles. Os brancos do «puto» dormiam uns por cima dos
outros, em casas que construíam, umas sobre o tecto das outras. Aquilo
deixava-os completamente incrédulos ; como é que eram tão «bárbaros»para
fazerem uma coisa daquelas?
Contava que para ele era muito difícil andar nas ruas de Lisboa.
«Muito difícil andar na rua. A rua
tem lugar para passar automóvel e passeio para as pessoas passarem.
Com tanto branco que andava na rua, quando punha pé no passeio vinha logo branco e eu descia; quando voltava a colocar pé no passeio já vinha outro branco, e eu descia. Muito, muito difícil andar no passeio , no puto (...) »
A viagem deste humilde pastor perdurou por muito tempo na
memória daquela gente e constituiu um momento de orgulho para todos eles.
Afinal, formas simples de contacto e de aproximação humana espontânea, natural,
vestida de graciosa ingenuidade, mas profunda nos seus efeitos. O
reconhecimento das diferenças entre povos e culturas, ocorrência que se repete
desde o fundo dos tempos, tanto pode gerar conflito e confronto, como
proporcionar aproximação e convivência pacífica, miscigenação, de que emerge
mais cedo ou mais tarde, uma nova síntese cultural, novos padrões de ser e de
agir.
... (...)
In A ÚLTIMA ESTAÇÃO DO IMPÉRIO
Bento da Cruz fez deste livro a maior recensão que conheço, 12 páginas de apreciação altamente elogiosa, onde se escreveu: “A ÚLTIMA ESTAÇÃO DO IMPÉRIO - UM LIVRO NOTÁVEL
ResponderEliminarDesde a Ilíada de Homero que a guerra tem sido fonte de inspiração de livros imorredoiros. Podemos dizer afoitamente que este de António Chaves enfileira entre os melhores. Para além do ambiente de quartel, captado e descrito com mão de mestre, fala-nos do sortilégio dessa África misteriosa, sob muitos aspectos ainda mal conhecida…”