quarta-feira, 7 de agosto de 2024

A FÁRRIA - BENTO DA CRUZ

 

 Por MARIA da GRAÇA


Contra-capa 

 

"Mas muito mais grata é a profusão daquilo que no preceituário poético de Horácio é designado como «callida junctura» , ou seja, a hábil junção qualificativa ou metafórica de palavras, por vezes tão expressiva e natural que não se sabe ao certo se estamos a ouvir (ou ler) pela primeira vez: a triste voz desflorada de uma pastora amigada com um padre; um remorso como agridoce lambedela de vício secreto; umas sardinheiras de troncos erectos e ancas a peneirar as saias (parece Cesário e é até melhor)". 

                                                                                      Óscar Lopes

Em O Lobo Guerrilheiro (1991) pede meças aos melhores contadores de histórias romanescas. Obteve várias distinções entre elas o Prémio Literário Diário de Notícias. (...) O Retábulo das Virgens Loucas (1996) é a sua obra mágica por excelência, em que todos, seres humanos, seres vegetais, bichos das brenhas, água dos açudes ou dos rios debruados de salgueiros, tudo se agita na louca dança da vida.

                                                                          Urbano Tavares Rodrigues

A arte de Bento da Cruz pode ser lida como uma insurreição contra o novo globalismo. O Barroso, deste ponto de vista, aparece como símbolo; significa a diferença, o humano peculiar contra o falso universalismo.

                                                                          X.L. Méndez Ferrin

 

 

                                                                       A FÁRRIA

Escolhi o domingo para fugir ao espectáculo doloroso e deprimente das urgências e consultas externas  dos nossos hospitais. Informei-me na recepção,  mas não me dirigi directamente ao quarto que me indicaram. Passei primeiro pelo gabinete da enfermeira-chefe.

- Desculpe. Sou médico e amigo do  Silvério Silvestre. Poderia ver a ficha?

Era uma senhora de meia-idade e poucas falas. Passou-me o papel em silêncio. Fui logo direito ao diagnóstico. Operado a um cancro da próstata com fístula vesical. Em tratamento de radioterapia. 

Devolvi o processo.

- Um caso perdido?

- A isso não me compete a mim responder. Terá de perguntar a um médico. Mas a esta hora não se encontra cá nenhum.

- Obrigado.

- De nada.

Saí para o corredor e hesitei. Levava ainda nos ouvidos aquela voz melífera, caça moscas ou papalvos, do telefonema da véspera:

- Posso falar com o Dr. Mendes?

- Aqui o tendes.

- Desculpe incomodá-lo.

- Incomoda nada. Diga.

- Sabe? Faço parte do "Voluntariado do IPO" e estou a ligar-lhe a pedido de um nosso doente que gostaria de falar consigo.

- Quem é ele?

- Silvério Silvestre.

- Não estou a ver.

-Mas ele deve conhecê-lo, porque quando eu lhe perguntei se não tinha amigos aqui na cidade, ele me indicou o seu nome. Sabe? Por vezes os nosso doentinhos sentem-se muito sós ...

- Está bem. Diga ao Silvério que logo que possa lá apareço.

- Bem haja.

Sentia-me desconfortável, pouco à vontade. Não tenho feitio nenhum para mentiras. E o que a maioria das pessoas diz a um moribundo entra na lista das chamadas "mentiras piedosas" que mais não são do que palavras hipócritas, quase obscenas, género: "Está com um óptimo aspecto!" "Parece um rapaz (ou uma rapariga) de vinte anos..." Tomaram muitos as suas cores!" "Está aqui está lá fora..." Segundo a ficha, no caso do Silvestre, esta última cacofonia ficava melhor assim composta: "Está aqui está na sepultura..."

Afinal deparei com velhote escaveirado, sim, mas surpreendentemente bem disposto.

- Oh , doutor! Estava morto por falar consigo!

- Pois aqui me tem.

-Já se não lembrava de mim?

- A sua cara não me é estranha de todo. Mas ...

- Pisões...

- Já me lembro. Trabalhava na Hidroeléctrica do Cávado, se não estou em erro?

- No empreiteiro, a MAGOP.* Mas não era sobre isso que eu lhe queria falar. Antes de mais fique a saber que li todos os seus livros e todos eles mais que uma vez.

_  Muito obrigado. Os meus leitores não são assim tantos que a descoberta de mais um não seja para mim motivo de regozijo.

- E agora um segredo que gostaria ficasse entre nós.

-O seu desejo será respeitado.

- Andei muitos anos com a ideia de escrever um romance. Mas tanto adiei que o tempo se me esgotou.

-Homem! Ninguém tem a vida a prazo. Se traz o romance na cabeça, pode escrevê-lo de um jacto. Agarre-se ao verbo.

- Aí é que está o busílis. Eu não tenho o romance na cabeça. Apenas algumas ideias, tudo muito vago.

- E posso saber qual o assunto?

- A Borralha.

- Não se vá sem resposta. Também eu já pensei no mesmo.

-Ah! O doutor é que era a pessoa indicada!

- Está enganado. Nunca lá trabalhei. Nunca seria capaz de me dar no ambiente das minas.

-Nisso é que eu o podia ajudar. Trabalhei lá a vida inteira.

- Trabalhou nas minas e nas barragens ao mesmo tempo?

- Não. Fui para os Pisões quando as minas fecharam, em 1958, mas regressei uns cinco anos depois, quando elas reabriram. Está disposto a ouvir-me?

- O tempo que for necessário.

- A dificuldade é que nem sei por onde começar.

- Pelo princípio, naturalmente. ...


* Consórcio entre a MAG Moniz da Maia e Vaz Guedes e a SEOP Sociedade de Engenharia e Obras Públicas para a construção da Barragem de Pisões.

IN A FÁRRIA

( ... ...)

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