A propósito das ultimas demissões governamentais, aconselha-se este artigo de 2018, publicado pelo politicólogo Raul de Almeida.
Raul de Almeida, Politólogo - Jornal Económico
23 Abril 2018
É da tradição política dos últimos 43 anos que o PS se
assuma como dono do regime, e a esquerda como a sua inquestionável guardiã.
A expressão ética republicana é muitíssimas vezes
fonte de mal-entendidos. Não é muito bem aceite por monárquicos, que entendem
que a expressão tenta limitar a ética a quem é republicano. Não é, a maior
parte das vezes, usada com rigor pela brigada da tradicional esquerda
republicana, que a usa precisamente com a arrogância de uma certa exclusividade
de grupo. Em boa verdade, ambos acabaram por desvirtuar o conceito, uns por
preconceito, os outros por apropriação indevida e deturpação óbvia.
O conceito pode ser aplicado a muitas das monarquias
de hoje com propriedade, e não faz sentido algum em grande parte das
repúblicas. Esta ideia de uma ética na gestão da coisa pública, a virtude na
res publica, nasce, ou teoriza-se, inicialmente com Sócrates (o filósofo grego,
claro!) e reforça-se de modo ainda mais evidente no seu discípulo Platão.
Pretender que há alguma ligação entre o conceito de ética republicana e a
Primeira e Segunda Repúblicas portuguesas é um rematado disparate. Tentar
fundá-la na Revolução Francesa é uma ambição desonesta do jacobinismo
manipulador.
Vem isto a propósito da profunda descredibilização da
república a que vimos assistindo. Das três Repúblicas que Portugal teve após o
golpe sangrento de 1910, a Primeira foi o período mais tresloucado e instável
dos nossos nove séculos de história, e a Segunda foi a ditadura mais longa do
século XX europeu. A Terceira República está a ser destruída pelo Partido
Socialista.
É da tradição política dos últimos 43 anos que o PS se
assuma como dono do regime, e a esquerda como a sua inquestionável guardiã.
Daqui, decorre toda uma postura facilmente identificável e materializável nos
mais caricatos episódios. Se até nos podemos rir com o célebre “saia da frente
ò Shô Guarda!”, já terá menos graça, pela gravidade que encerra, o também
célebre “quem se mete com o PS, leva!”. A sensação de “direito superior”, ou de
“legitimidade histórica”, na gestão dos assuntos do Estado acaba sempre mal.
Olhando para trás, apenas Guterres foi discreto e
cauteloso nesta matéria, tendo fatalmente sido triturado pela máquina
socialista, ávida de tomar conta do que considera inquestionavelmente seu. De
resto, misturam a dignidade do Parlamento com o caso Casa Pia, mandam calar
adversários, destituem governos para repor a “normalidade dos amigos”, usam e
abusam do Estado, como se lhes pertencesse por direito divino.
Os casos de Manuel Pinho e de Carlos César, sendo
diferentes, atestam esta forma de estar. César é, acima de tudo, um homem sem
vergonha; vive do Estado, empregou a família no Estado, mexe-se como ninguém
nas oportunidades que o Estado proporciona, sacando o que deve e o que não
deve. Aparentemente, não será fácil provar a ilegalidade da contratação de
todos os seus familiares que vivem dos nossos impostos, como parece não haver
uma lei específica que puna a acumulação indevida de subsídios de deslocação,
mas também há, por muito que queiram fazer esquecer, uma diferença substancial
entre quem age com lisura e ética e o videirinho que se movimenta em busca de
vantagens próprias nos limites cinzentos da lei.
Manuel Pinho, sabe-se agora, receberia um ordenado
chorudo do BES enquanto ministro de Sócrates e colega de Costa. É legítimo
perguntarmos se Pinho recebia a maquia milionária apesar de ser ministro, por
ser ministro ou para ser ministro. Já há quem defenda que era legítimo.
Legítimo nunca será, poderá eventualmente vir a saber-se que anda nas tais
zonas cinzentas da legalidade, não sendo crime, e isso para o PS basta.
A estes casos podíamos somar Vieira da Silva com o seu
passado, a sua família, as deslocações da família e a forma selectiva e
persecutória como dirige a Segurança Social. Podíamos somar muitos outros, os
grupos de poder, as “solidariedades”, o regabofe a que nos habituaram.
Este Governo toma posse e impõe-se com base num
expediente legal; pela primeira vez em Portugal, governa quem perdeu as
eleições. É legal e constitucionalmente permitido. Não é legítimo, em face da
história e da tradição da Democracia Portuguesa. Para o PS chega. É exactamente
este raciocínio do máximo aproveitamento dos expedientes que a lei permite, que
separa a ética republicana do oportunismo socialista. Na ética republicana, não
basta estar no limite da legalidade para ser eticamente aceitável. Na ética
republicana, ao contrário da troupe de Costa, o poder exerce-se criteriosamente
na interpretação do que é o interesse público, e não os interesses particulares
das diferentes clientelas que exigem satisfação.
Na ética republicana, a justiça e a equidade valem
sempre muitíssimo mais que o amiguismo e o favorecimento dos mais próximos.
Não, não é pela mão deste PS que Portugal vai conhecer a ética republicana que
a Primeira e a Segunda Repúblicas lhe negaram. Bastar-nos-á um grupo de gente
habilidosa o suficiente para não ir presa pelos seus actos? César é menos
condenável com a usurpação que fez de dinheiros públicos, porque não há uma lei
específica que o puna? É isto a tal ética irrepreensível que sossega o PS?
Era, portanto, bom, que sujeitos como Ferro Rodrigues
se dedicassem ao conceito do pudor republicano. O homem que Costa fez questão
de impor como segunda figura do Estado, é a última pessoa que poderá falar em
ética, republicana ou de qualquer outra ordem. Logo, voltando à Grécia antiga,
o que quer dizer “eticamente irrepreensível” na boca de quem nega a ética por
pensamentos, palavras, actos e omissões?
Costa, outrora o homem forte do governo Sócrates, ressuscitou muitos dos que lá estiveram e devolveu-lhes o poder que interromperam, fez de César presidente do seu grupo parlamentar e presidente do Partido Socialista, fez de Ferro Rodrigues presidente da Assembleia da República. Há aqui um traço de profunda coerência, e isso não é bom para o país. Deixem, por favor, a ética republicana em paz; não se aplica.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
FONTE: https://jornaleconomico.pt/noticias/a-etica-republicana-297684
Nota de tempo caminhado:
A ética ou é ética, ou não é coisa nenhuma. Nem é
republicana, nem monárquica, nem democrática. É um conceito universal de
comportamento.
Embora podendo legalmente tomar uma atitude,
eticamente, pode bem acontecer que a não devo tomar.
Imagine-se, por exemplo, que a “Lei” (coloco entre
aspas porque considero que muitas notas de lei são abusivas, não são leis,
mas foram aceites pelo Parlamento e por outros poderes, em prejuízo dos
cidadãos) me permite tomar posse de qualquer coisa em prejuízo de terceiros. A
questão ética que se coloca é a seguinte: Embora podendo, devo tomar posse
dessa coisa?
Isto é um comportamento ético universal que nada deve à
República ou a qualquer outro sistema político.
Ora o que tem acontecido neste turbilhão de demissões,
não são “trapalhadas”, como muitos querem, para esconder algo profundo que se
assemelha a uma cleptocracia,
alicerçada num ignóbil nepotismo que atravessa toda a sociedade portuguesa.
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