JORGE LAGE
A história por
mim vivida, em 16NOV2021, merece ser contada para os amigos. Desde há uns 8
anos, sempre que estou por perto de Évora, almoço ou janto no Restaurante
Bolas, em Azaruja (ou Vila Nova do Mato). É um daqueles restaurantes de aldeia,
onde trabalha o casal Bolas e mais uma simpática senhora. Mas, o Bolas nivelou
o restaurante, na qualidade, por cima, estando referenciado na «rota dos
sabores».
Uma refeição começa pelas entradas de presunto de porco preto e de
queijo artesanal alentejano do melhor que se produz nas queijarias da região.
Os pratos são dos tradicionais alentejanos, assentando na qualidade dos seus
produtos. Mesmo umas pescadinhas de rabo na boca são bem melhores dos que as
que comi num dos restaurantes da marginal da Nazaré. O vinho multicasta ou
tradicional, da Herdade de São Miguel, é dos mais encorpados tintos (bebi, com
a minha esposa, uma garrafa de 50 centilitros de excelente tinto). Sendo assim,
uma refeição não pode ficar baratucha, como em muitas aldeias, mas o binómio
qualidade/preço compensa bem os que apreciam a boa comida. Como me dizia um
cliente local: - não é barato, mas come-se muito bem. E come mesmo. Quando
estou pelo Parque das Nações (Lisboa), uma vez por outra, gosto de ir almoçar
ao Bolas e dar uma volta pela região e, se visitar a sala de vendas de uma das
adegas cooperativas da região e comprar do melhor que por lá existe, torna-se
um bom momento enológico. Desta vez passei pela Adega Cooperativa de Redondo,
que produz a badalada gama dos «Porta da Ravessa» e outros de se tirar o
chapéu. Voltando ao Restaurante do Bolas, nesta última visita, dei-me ao
trabalho de correr com a vista as prateleiras de vinhos ao dispor dos clientes.
Nas garrafas de litro e meio chamou-me a atenção a velhice de uma botelha de
tinto de 1999, «Convento da Vila», da Adega Cooperativa de Borba, com parte do
rótulo já desfeito pelo tempo como se pode ver na fotografia que anexo. Depois
de ter pago a refeição, e enquanto esperava pela factura, voltei a deitar o olhar
às garrafas de 1,5 litros e lá estava a «bazuca» (o formato é parecido com o
terrível «brinquedo bélico») senti um redobrado desejo de a comprar e a levar
comigo, como um apaixonado seduz a namorada. Por isso, disparei para a
funcionária: - aquelas garrafas são para vender? E responde: - acho que não.
Queria alguma? E aponto para a garrafa «Conventos da Vila»: - aquela. O Bolas
estava a cruzar-se connosco e a funcionária diz-lhe: - quer-lhe comprar uma
garrafa daquelas ali. O Bolas fita-me na sua sábia bonomia e pergunta-me: -
qual é? Eu aponto para a «minha Apaixonada». Acto contínuo retira a garrafa da
prateleira, mira-a bem como se quisesse fazer a despedida de um familiar ou
amiga, e ainda com ela na mão pergunto-lhe: - quanto custa? Ao que ele me responde:
- tome-a. Ofereço-lha... Fiquei sem palavras… Naquele momento era o que de mais
precioso eu desejava. Disse-lhe: - muito, muito obrigado, Senhor Bolas! Não
sabe quanto lhe agradeço… Quando voltar vou trazer-lhe um livro meu. Ao que
remata: - já não devo estar cá! Estou velho! Já tenho 75 anos, mas, se não
estiver aqui, pode encontrar-me na casa aqui ao lado. Voltei a agradecer-lhe e
despedi-me como se me fosse dado um dos melhores troféus de toda a minha vida.
Ao passar a porta do restaurante sentia uma felicidade incontida e fui inundado
por uma onda de emoção, deixando a minha alma humedecida por largos momentos. O
resto da tarde parece que deslizou melhor e ao regressar a Lisboa pego na
«Convento da Vila» como em algo que requer cuidados e pouso-a, na mesa de
trabalho, junto ao computador, como elemento decorativo e recordativo. É assim,
esta garrafa não a desejo tanto para a abrir e beber, nem sei se algum dia a
vou beber. É o desejo de posse de um bem precioso da minha ruralidade profunda,
seja transmontana, minhota, beirã ou alentejana, quase tão necessário como o ar
que respiro, complementando e estimulando a minha vivência neste mundo terreno.
Quando algum amigo ou instituição me oferece uma «atenção», antes da entrega só
penso num qualquer produto do campo e os demais pouco me dizem. Por isso, o
Senhor Bolas deu-me do melhor que tinha, uma velha (vinho amigo, o mais antigo)
senhora garrafa de vinho e nunca o esquecerei. Obrigado, Senhor Bolas!...
Venho aqui chamado por esta bela crónica do meu amigo Jorge Lage feita com uma simples peça vinícola oferecida por um amigo ocasional, num acto de bondade pura, mas também de amor por um objecto que não tinha preço: uma garrafa de tinto de Convento da Vila com 21 anos. E o Jorge, num gesto de inteligência emocional, a colocou na sua secretária para que lhe sirva de talismã nas suas lavouras de escrita. E fez bem porque até a mim já me inspirou esta resposta, trazendo também aqui a história de uma garrafa de vinho que me foi oferecida pelo primo Artur Sales Major quando casei em 1967. A garrafa é de vinho de Favaios 1960, título este inscrito numa nota de 5 cts de Mirandela. Pois hoje fui à descoberta da garrafa, está aqui também na minha secretária, espreitei o conteúdo, esperando ver turvação e espantado mirei um líquido transparente, limpo, e a pedir que o bebam. Um dia será, mas com testemunhas e bem próximo que se faz tarde. Assim, pegando em coisas simples como estas que nos inspiram seguimos a corrente da modernidade que se propõe partir do efémero (o vinho que se bebe e desaparece) para chegar a algo mais perene (como estas escritas que ficam ai para que se degustem quando se entender). Bem haja então o senhor Bolas, que nos juntou nesta escritas simples e boas de ler.
ResponderEliminarJorge Sales Golias
Duas crónicas deliciosas escritas por 2 Jorges transmontanos, poetas das coisas boas da terra. E eu, quentinho à lareira, beberricando moderadamente e aspirando o perfume duma bagaceira velha amadurecida em casco de carvalho da adega de Murça. O céu pode esperar...
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