Ainda hoje, e por mais vezes que se revejam, são arrepiantes as imagens de
Carlos Lopes a entrar no estádio olímpico para os metros finais dos 42,195
quilómetros que fazem da maratona a prova rainha das olimpíadas.
Mário Ramires - Jornal SOL
Faz 37 anos que Carlos Lopes conquistou a primeira medalha de ouro olímpica
para Portugal (oito anos depois de ter visto o finlandês Lasse Viren adiar-lhe
esse sonho e relegá-lo para a prata nos 10 mil metros em Montreal).
Ainda hoje, e por mais vezes que se revejam, são arrepiantes as imagens de
Carlos Lopes a entrar no estádio olímpico para os metros finais dos 42,195
quilómetros que fazem da maratona a prova rainha das olimpíadas.
Como é igualmente emocionante recordar aqueles momentos finais de Rosa Mota
nos Jogos de Seul para conquistar o ouro na maratona feminina com um
contagiante sorriso de felicidade estampado no rosto e os braços franzinos bem
erguidos no ar ao cortar a meta.
Momentos de glória e inesquecíveis para toda a Nação portuguesa.
Noutros tempos.
Em 1984, as esperanças dos portugueses na conquista de uma medalha recaíam
em dois atletas do Sporting treinados por Mário Moniz Pereira: Fernando Mamede,
recordista do mundo dos 10 mil metros, e Carlos Lopes, que ficara em segundo
nessa memorável corrida de Estocolmo de 2 de julho de 1984, com o segundo
melhor registo de sempre na distância.
Um mês e uns dias depois, Mamede desistiria na final olímpica dos 10 mil
metros, pressionado pelo seu rival italiano Alberto Cova e traído pela sua
menor resistência psicológica em situações de stresse, que o conduziu a sair
disparado para o túnel de acesso (neste caso, de saída) à pista, entregando o
ouro de bandeja ao transalpino.
A 12 de agosto de 1984, Carlos Lopes conquistaria mesmo a primeira medalha
de ouro olímpica para Portugal.
Nunca tinha ganho uma maratona antes, mas partira com a confiança de que,
de facto, era dos melhores do mundo em corridas de fundo – como o próprio
Carlos Lopes assume, lembrando uma história passada com Mário Soares, então
primeiro-ministro, nos jardins de S. Bento, durante a receção à comitiva
portuguesa nas vésperas de levantar voo para Los Angeles. Numa entrevista já
com alguns anos, ao Expresso, Lopes reproduz o seu diálogo com Soares: «‘Oh
doutor, se eu ganhar uma medalha, não temos direito a um churrasquinho de
cabrito aqui no nosso quintal?’. Ele virou-se para mim e respondeu: ‘Eh pá,
você tem uma lata do caneco. Olhe, mas traga lá a medalha que não é um cabrito,
é um boi’. E assim foi. Com a comitiva toda e mais alguns convidados. Foi
giríssimo».
Quatro anos depois, Rosa Mota (que chegara ao bronze em Los Angeles)
triunfaria em Seul depois de um braço de ferro com a Federação Portuguesa de
Atletismo, que a queria obrigar a correr num mundial de estrada a dois meses
das olimpíadas contra a sua vontade e do seu treinador de sempre, José Pedrosa.
A atleta, suspensa pela Federação, chegou a admitir inscrever-se nos Jogos
pelas cores de... Macau. A querela, na altura, obrigou à intervenção do
ministro da tutela (e da Educação), Roberto Carneiro, acabando por vingar o bom
senso.
Com a diferença de fuso horário, Portugal inteiro ficou acordado madrugada
dentro para acompanhar em direto a proeza de Rosa e torcer por ela.
De facto, outros tempos. Nada que se compare com a realidade dos dias de
hoje.
Os problemas da superginasta americana Simone Biles – que desistiu da
competição para preservar a sua saúde mental (e afastar os «demónios na
cabeça») –, por mais que se queira extrapolar, não são muito diferentes da
pressão para vencer que pesava, mais do que sobre os ombros, sobre a cabeça de
Fernando Mamede. E de tantos milhares de atletas, mais ou menos talentosos,
incapazes de lidar com a pressão.
Os Jogos Olímpicos são um dos pontos altos da alta competição mundial,
entre atletas (na sua esmagadora maioria) profissionais e significativamente
financiados pelos Estados.
Não deixam de ser um momento de celebração da paz, dos ideais de Coubertain
e de reunião de representantes de todos os países dos cinco continentes
representados pelos entrelaçados anéis olímpicos de cores diferentes.
Mas são um desafio à superação. Daí o lema, herdado dos Jogos da
Antiguidade, ‘mais rápido, mais alto, mais forte’.
Quando o espírito de competição e a exigência desportiva são relegados para
secundaríssimo plano por questões que nada têm a ver com o desporto – seja o
recurso a substâncias proibidas que adulteram a verdade e abalam física e
psicologicamente os atletas, sejam pelejas políticas que deviam ser resolvidas,
sim, noutros fora ou sejam até posições tão absurdas como o tamanho máximo
imposto aos biquínis das jogadoras de voleibol de praia ou, a contrario, os
maillots das ginastas alemãs «contra a sexualização dos Jogos» (para não falar de que, hoje, já só falta
termos o berlinde como modalidade olímpica) – está todo o interesse dos Jogos
Olímpicos, no essencial, perdido.
É o triunfo da estupidez, muito para além de todos limites.
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