ANTÓNIO MAGALHÃES
Decorria
o ano de mil novecentos e noventa e qualquer coisa.
O
Carlos Diogo um dia perguntou-me…porque não fazes um programa na rádio
Felgueiras. E eu pensei no assunto e fiz.
Nessa
altura a rádio era considerada pirata, o que, soando-me a ilegalidade era um
incentivo extra para fazer parte da equipa de outros piratas jovens como eu, na
idade do contra e da contestação. Mesmo assim, fui sempre um contestatário, mas
daqueles que fazem pouco ruido com as orelhas, e as minhas contestações feitas
através dos programas de rádio e de alguma escrita, depressa se esfumavam com a
mesma rapidez com que surgiam.
Sendo
assim, apresentei um projeto que dava especial destaque a poetas e escritores
portugueses, tudo muito bem misturado com muita música uma vez que o programa
seria para ir para o ar às sextas-feiras entre as 20 e as 22 horas. Dei-lhe o nome de “Musica e Letras”.
Comecei
então a fazer pesquisa acerca dos nossos poetas e escritores, a apresentar uma
resumida biografia de cada um deles, a ler excertos de poemas e textos que na
minha opinião mais os definiam, ou pelo menos que a mim mais me haviam marcado.
Escritores
e poetas como, José Saramago, Fernando Pessoa, Fernando Namora, Soeiro Pereira
Gomes, Branquinho da Fonseca, Florbela Espanca, Miguel Torga, Manuel da
Fonseca, A. Garibaldi, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis e muitos outros.
A
tarefa não era tão fácil como se possa pensar. Nessa altura não se tinham as
informações à distância de um clique, e o melhor amigo do homem ainda era o cão
e não a google.
Um
dia, depois de ler um pequeno texto de Miguel Torga passei uma música de Zeca
Afonso. Gostava imenso da voz de Zeca Afonso e da simplicidade da sua música
que apesar de tudo me soava como única. Nesse dia deveria estar com um dos meus
raríssimos momentos de concentração porque nessa música em particular, a letra
chamou-me a atenção como não o tinha feito antes,
“Quando
a corja topa da janela
O
que faz falta
Quando
o pão que comes sabe a merda
O
que faz falta (…)
Quando
nunca a noite foi dormida
O
que faz falta
Quando
a raiva nunca foi vencida
O
que faz falta (…)
Depois,
ainda nesse mesmo programa, num outro intervalo de filosofias literárias voltei
a passar mais uma música de Zeca e a deitar uma especial atenção à letra.
“Negro
bairro negro
Bairro
negro
Onde
não há pão
Não
há sossego”
E a
partir daí mais do que ouvir a voz melódica de Zeca Afonso, comecei a ouvir o
significado das suas letras, a mensagem que delas nos passava.
“Onde
o vento cortou amarras
Largaremos
pela noite fora
Onde
há sempre uma boa estrela
Noite
e dia ao romper da aurora
Vira
a proa minha galera
Que
a vitória já não espera (…)”
Ou
“No
chão do medo tombam os vencidos
Ouvem-se
os gritos na noite abafada
Jazem
nos fossos vítimas dum credo
E
não se esgota o sangue da manada.
Eles
comem tudo, eles comem tudo
E
não deixam nada (…)”
E,
um belo dia, suspirei, porque os belos dias são aqueles em que suspiramos ao
constatar que são as coisas simples da vida que nos fazem regozijar o coração e
amar a vida, apesar de todas as incongruências que ela tem, e pensei…porra,
este homem não é só um grande cantor de intervenção, é também um poeta capaz de
trazer na voz todas as palavras de um povo sofrido, oprimido e amordaçado. E
então percebi que Zeca Afonso era o poeta que me faltava falar no meu programa.
É
certo que nessa altura ele já tinha falecido, mas Camilo Castelo Branco havia
falecido há bem mais tempo e isso não me impediu de lhe dedicar um programa. O escritor
ou o poeta parte, mas as palavras que deixou registadas, ficam.
José
Afonso apesar de ser um grande poeta tinha também a rara particularidade de
através do seu talento para a música dar voz melódica às suas poesias.
Era
um homem tímido, modesto, inteligente.
O
programa “Música e Letras” ia para o ar há mais de dois anos e tinha um punhado
de ouvintes que o acompanhava com alguma assiduidade. O programa era a
conjunção de duas paixões minhas que perduram até aos dias de hoje, a música e
a literatura.
O
“Música e Letras” dessa noite longínqua do ano de mil novecentos e qualquer
coisa, dedicado ao grande trovador, mas acima de tudo enorme poeta, José
Afonso, foi muito bem-sucedido e até apreciado.
Apesar
de ser o meu programa, a ideia de fazer esse especial Zeca Afonso nasceu da
minha paixão pelas letras e pela música, e o saudoso Zeca Afonso tinha essas
duas características únicas.
Tanto
quanto julgo saber, a associação José Afonso, núcleo de Setúbal, tem arquivado
esse programa uma vez que contou com depoimentos de figuras públicas
portuguesas que de certa maneira estavam ligadas a José Afonso, como a atriz
Maria do Ceu Guerra, o encenador do teatro a Barraca, Hélder Costa, Eduardo
Luís Cortesão, professor catedrático de psiquiatria, Otelo Saraiva de Carvalho,
Sérgio Godinho, entre outros.
Sem
descorar o excelente trabalho na recolha destes depoimentos, do meu recente
colaborador do programa, ninguém, penso eu, na associação José Afonso, sabe que
este programa, “Música e Letras” dedicado àquele que foi uma referência e um
símbolo de liberdade, e por quem eu sempre tive uma grande admiração, é(ra) o
meu programa, que nessa altura assinava como Oliveira Magalhães. Como sou um
rapazinho muito modesto, deixo que outros colham os louros enquanto eu fico
sossegado e ignorado num cantinho…
“Não
me obriguem a vir para a rua gritar
Que
é já tempo d’embalar a trouxa e zarpar
Bem
me diziam
Bem
me avisavam como era a lei
Na
minha terra quem trepa no coqueiro
É o
rei.
António Magalhães
... -"Amigo/ Maior que o pensamento/ Por essa estrada amigo vem/ por essa estrada amigo vem / Não percas tempo que o vento / é meu amigo também / É meu amigo também" ...
ResponderEliminarTraz outro amigo também...
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