Paulo Tunhas - Observador
(27/7/2021)
É em nome do Eu – Eu, Eu, Eu – que a liberdade do discurso (“expressão” é
um conceito mais ambíguo) é limitada dia após dia, num enclausuramento
progressivo. Já estivemos mais longe do 1984 de Orwell.
Tudo, a pouco e pouco, se vai tornando mais apertado, vigiado e
regulamentado: a liberdade, a linguagem, o pensamento. Cada semana nos traz
novos exemplos, cada um apimentado com uma certa cor local, mas todos eles convergindo
num ponto único: o de uma censura generalizada que visa interditar a liberdade
do discurso em nome da necessidade de proteger a célebre “auto-estima” quer de
certos grupos étnicos, quer da subjectividade individual erigida em lugar de
permanente queixa contra a indiferença alheia e a incompreensão do mundo.
Desenganem-se aqueles que pensam que tudo isto não passa de uma conjuntural e
provisória loucura destinada a desvanecer-se sob o efeito de um sopro de
bom-senso vindo de um qualquer lugar, ou auto-destruindo-se como resultado dos
seus próprios exageros. Não. Foi algo que veio para ficar e que apresenta todos
os sinais de uma tendência poderosa e praticamente incontrolável que varre tudo
à sua frente. Não pretendo que seja impossível encontrar pequenos lugares de
resistência a essa tendência generalizada, mas estou certo que eles se pagarão
com um cada vez maior isolamento e com uma indisfarçável solidão.
Os Estados Unidos estão, como de costume, na vanguarda das ideias e é o seu
exemplo que inspira o que se passa hoje em dia em Inglaterra e por essa Europa
fora. A França, por exemplo, distingue-se do resto apenas pela forma
particularmente virulenta como o chamado “islamo-esquerdismo” aí se manifesta.
Mas, no essencial, é a mesma coisa. E quem fala da Inglaterra e da França, fala
da Europa democrática inteira, inclusive do nosso pequeno Portugal, onde os
elementos mais arcaicos do Bloco de Esquerda – aqueles que vêm das várias
formas da herança política do marxismo – paradoxalmente funcionam ainda como
obstáculo ao pleno desenvolvimento da nova ideologia woke, apesar do Bloco a
exprimir abundantemente, ao ponto de isso se ter transformado na sua imagem de
marca.
Fiquemo-nos por alguns exemplos dos últimos dias, que são tudo menos
exaustivos.
A mayor de Chicago, Lori Lightfoot, do Partido Democrata, é negra. Apoia, é
claro, o Black Lives Matter. Mas não se fica por aí. Para combater o “racismo
estrutural” ou “sistémico”, tomou uma curiosa decisão: conceder apenas
entrevistas individuais a jornalistas negros ou, grande sinal de tolerância,
mestiços. Todas as críticas que lhe haviam sido feitas enquanto mayor,
declarou, provinham de um enviesamento racial. E ela já perdeu a paciência para
educar homens brancos. A extraordinária decisão foi acatada sem grandes
protestos na cidade. De resto, os programas que a Câmara de Chicago tem
lançado, reforçados agora pela insistência do Presidente Biden em políticas
centradas na “equidade”, já abundam em critérios que determinam a exclusão
racial daqueles que têm a pele branca. Ficam surpreendidos com o gesto de Lori
Lightfoot? Deviam ficar ainda mais surpreendidos com a tranquila aceitação que
a comunidade testemunha a esse gesto. Ela não o teria tomado se não soubesse
que, nos Estados Unidos dos nossos dias, quase ninguém a censuraria por isso. A
restrição da liberdade do discurso, ainda por cima motivada por preconceitos
racistas, está ali bem instalada. Como notou a escritora francesa (e negra)
Rachel Khan, um novo segregacionismo, com as suas particulares neuroses, tomou
conta dos Estados Unidos, e com ele a intolerância e o totalitarismo.
Tanto a decisão de Lori Lightfoot quanto a naturalidade como foi acolhida
só se explicam pela difusão generalizada da tese do “racismo sistémico” ou
“estrutural” posta a circular pela socióloga Robin DiAngelo. De acordo com a
tese, tudo, sem excepção, na nossa sociedade testemunha da pervasividade do
racismo branco, tão presente nos comportamentos claramente racistas quanto
naqueles que aparentemente contra estes se insurgem, desde que atribuídos a
brancos. De facto, quando um branco se afirma não-racista está, sem ter
consciência disso, a exorbitar de racismo (é a “fragilidade branca”), já que
pretende ocultar o facto de que a sociedade como um todo se encontra
estruturada de forma racista, ao ponto de a expressão “racismo branco” aparecer
como naturalmente pleonástica: todo o racismo é branco e todo o branco é
racista.
Como é bom de ver, não é só a ideia como um todo que é absurda. Os seus
efeitos práticos são fantasticamente perniciosos em todos os domínios. Vejam o
caso da polícia. Se um polícia branco prende um negro, por muitas razões que
tenha para o fazer, a acusação de racismo cairá logo sobre ele, impiedosa. E,
de acordo com a doutrina, ele está, de facto, a ser racista, conscientemente ou
não. Quando recentemente a activista negra Sasha Johnson foi alvejada em
Londres (encontra-se em estado crítico no hospital), logo a dirigente
trabalhista e deputada Diane Abbott, muito próxima do antigo líder Jeremy
Corbyn, denunciou um crime de ódio racista. Acontece que a investigação
policial parece concluir que a bala que lhe acertou foi uma bala perdida numa
rixa entre dois gangs constituídos por negros. O que poderia ser visto como um
desmentido da acusação de Abbott, se deixado nas mãos de um discípulo ou
discípula de Robin DiAngelo imediatamente será visto, por artes mágicas da
dialéctica do “racismo sistémico”, como uma sua indirecta confirmação, já que
tudo está decidido à partida. Deixo a quem me lê a tarefa de imaginar o curso
dos argumentos. A fortuna extraordinária dos termos “sistémico” ou “estrutural”
é, de resto, prodigiosa. Um documento recente da Igreja de Inglaterra apela a
que a Igreja assuma o seu “pecado estrutural (structural sin)”. E certamente
que não faltarão por aí teses dedicadas ao “pecado sistémico” em Santo
Agostinho. Assim vão os tempos. Assim os tempos cada vez mais serão, não tenham
dúvidas.
Até aos mais ínfimos detalhes. Como, por exemplo, no caso das chamadas
“micro-agressões”. Seguindo o exemplo de várias outras universidades do Reino
Unido, a Universidade de Cambridge elaborou uma lista muito extensa de
potenciais ofensas que permitirão aos estudantes denunciarem o comportamento de
colegas e professores. A lista compreende um vasto conjunto de “micro-agressões”.
Por exemplo, se um professor franzir o sobrolho numa conversa com um estudante
negro, isso será imediatamente tomado como uma “micro-agressão” susceptível de
ser denunciada e convenientemente punida. O que é importante é que nada possa,
em nenhuma circunstância, ferir a “auto-estima” de qualquer minoria, étnica ou
outra. Na Califórnia, as escolas são encorajadas a guiarem-se, no ensino da
matemática, por um documento intitulado: “Um caminho para o ensino equitativo
da matemática: desmantelando o racismo no ensino da matemática”. A defesa da
equidade, tão cara a Joe Biden, passa aqui pela destruição do mito da
objectividade, que perpetua a supremacia branca e a opressão das minorias
através da convicção que existem “respostas certas” e “respostas erradas”. Ora,
não há respostas certas nem respostas erradas. Dois mais dois não têm de ser
quatro: podem ser cinco ou um balão azul. Pretender o contrário é fazer prova
do mais abjecto racismo sistémico.
E chegamos aqui a um ponto essencial. E esse ponto essencial é o da redução
da necessária luta pela igualdade entre entre negros e brancos, ou entre homens
e mulheres, a uma defesa extremada da subjectividade como lugar por excelência
de todas as virtudes. Da subjectividade individual e daquilo que se poderia
chamar a subjectividade colectiva das minorias. Tudo o que se possa opor a essa
subjectividade – em grosso, aquilo que Freud chamava a prova da realidade – é
visto como o inimigo a abater. Se alguém lembrar que nenhuma sociedade pode
sobreviver, para continuar a falar como Freud, se se reger apenas pelo
princípio do prazer sem qualquer limitação pelo princípio da realidade, tal
proposição é imediatamente vista como demonstrando o tal pervasivo racismo
sistémico. Nenhum exemplo disto é talvez tão bom como o título do programa que
Harry – o velho Taki, na Spectator, chama-lhe Prince Halfwit; eu chamo-lhe
Príncipe Tadinho – e a horrenda Oprah Winfrey têm em conjunto: The Me You Can’t
See, “O Eu que não podes ver”. Está tudo aqui. O egotismo primário. A afirmação
de uma verdade superior na profundidade do “detestável Eu” de que já falava
Pascal. A delícia obscura da auto-exposição, sem distância irónica alguma por
relação a si mesmo. A vontade nihilista de abolir um mundo que se recusa a
reconhecer-nos como o seu centro indisputável. “O Eu que não podes ver” é “O Eu
a que deves obedecer”.
É em nome desse Eu – o Eu de cada um e o Eu colectivo das minorias – que se
constitui um mundo de censura, todo ele concentrado na busca dos “crimes de
ódio”, tão latamente entendidos que abarcam praticamente tudo o que se quiser.
É em nome desse Eu – Eu, Eu, Eu – que a liberdade do discurso (“expressão” é um
conceito mais ambíguo) é limitada dia após dia, num enclausuramento progressivo
da palavra. Francamente, já estivemos muito mais longe do 1984 de Orwell.
Pode-se ouvir a polícia do pensamento a subir as escadas do nosso prédio. E
ficamos a saber quem é o Grande Irmão: é o Eu invisível, aquele que não podemos
ver. Face à sua omnipotência – como em Orwell e na grande canção esquecida de
David Bowie –, We Are the Dead.
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