20 Fevereiro 2021
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Adriano Moreira – Diário de Notícias
O ilustre escritor que é José Carlos Gentili,
presidente honorário da Academia de Letras de Brasília, escreveu, entre os
seus numerosos textos, um livro intitulado Lagoa dos Cavalos (2012),
um romance histórico do Brasil, que Adirson Vasconcelos sintetizou
escrevendo: "Levanta e discute temas de ontem e de hoje que nos levam a
pensar na igualdade de direitos, na liberdade de pensamento e na solidariedade
humana." Este "contar a história do povo nordestino" implicou
citar, na própria capa, um grito humano do padre Cícero Romão: "É
preciso dar um basta à anarquia."
A evolução das governanças desde os EUA até ao sul
onde o Brasil fez sempre lembrar a articulação do pensamento de
futuro entre o abade Correia da Serra, que participou na criação
da Academia das Ciências de Lisboa, e o seu amigo Thomas
Jefferson (1743-1826), lavrando o pensamento sobre a ordem que cada uma
das soberanias apoiaria respetivamente no sul e no norte, é a inquietação do
padre Cícero Romão que mantém vigor neste século sem bússola.
Primeiro porque os EUA já conseguiram, pelo exercício da presidência
como primeiro elemento da causalidade, que se traduziu no aviso "L'Amérique
saise par la folie" (Thomas Frank, 2020), e depois o movimento
político do sul do continente, que finalmente articula a perda de sentido dos
pensamentos do abade Correia da Serra e de Jefferson, este
presidente dos EUA (1801-09). Não é sem causa reconhecer que os vencedores
da Guerra de 1939-1945 tinham assumido a experiência do terrível
confronto, não apenas adotando uma cooperação económica, científica e cultural
para reformular a ordem ética e jurídica global, mas de tal autenticidade que
não pudesse esta ser destruída por intervenção da leviandade de que Otto
von Bismarck (1815-98) avisara do perigo. Infelizmente a ONU, fundada
apenas por ocidentais, organizou o Conselho de Segurança com uma
posição aristocrática, dando o direito de veto, inspirado pelo poder, a cinco
(EUA, Inglaterra, França, Alemanha, China) com o erro de
manter fora o governo vitorioso da China, dando a representatividade a Taiwan,
onde se refugiaram os vencidos exércitos do vencido Chang Kai-shek,
levando anos a receber a presença de Pequim.
Mas um dos problemas mais desafiantes, objeto de
várias declarações do Conselho de Segurança entre 1991 e 1994,
designadamente por efeito da intervenção no Kosovo, tornou evidente que
continuava o conflito do acomodamento entre soberanismo e cosmopolitismo, que levou
o presidente Clinton (EUA) a declarar que os interesses dos interventores não
podem deixar de ser considerados. Todavia, tinha-se admitido a criação dos
tribunais internacionais, que punissem os crimes violadores da Justiça comum,
em que se destaca o Tribunal de Nuremberga (1945) para julgar, com
lei retroativa, os crimes da guerra finda, e, prevendo outras instituições,
chegando à criação do Tribunal Penal Internacional, que recebeu forma pelo
Tratado de Roma, a 17 de julho de 2000, com resistência dos EUA e
da China que não querem os seus soldados combatentes julgados por
instâncias não nacionais, que inspiram casos como os referidos pelos United
World Federalist e World Peace Through Law.
Todavia, sempre pareceu, a várias correntes de
devoção, que foi mais importante a inspiração de João Paulo II para
apelar à união das Igrejas a favor da paz em termos do que passou a chamar-se
Nova Mensagem de Assis, e sendo discutido o conceito de que o fim da história,
que defende os modelos americanos no domínio da economia, e dos direitos
humanos, caminhava para a crise da própria utopia da ONU, visto o número
de conflitos graves que se multiplicaram, e hoje sem poder negar que a
comunidade mundial se encontra a admitir novo ordenamento sem unanimidade.
Infelizmente, a crise da pandemia, que atinge todos os
seres vivos, sem diferença de etnia, religião ou poder político, não conseguiu
alinhar globalmente a novidade da ofensiva da covid-19, que na vida interna dos
Estados, como se está a passar visivelmente com a França, acrescenta o
desacordo violento com islamitas; na América Latina, além dos efeitos das
lutas pelo regime, sempre se destaca o drama dos emigrantes;
na Etiópia o governo pretende acabar a guerra civil com a ação que
chama "retorno à ordem pública"; no Irão praticou-se o
perigosíssimo assassinato, que os governantes estão convencidos ter mão
estrangeira, e assim por diante. Os responsáveis pelo combate científico
inesquecível encontram ferida a paz, porque o Tribunal Penal Internacional declarou,
por acórdão, que não investiga crimes contra a humanidade porque nenhum Estado
coopera. O então presidente dos EUA considerou isso um triunfo.
O aviso crescente é a ainda falta de confiança das
populações sobre a justa utilização do saber científico respeitado. A paz e a
confiança tornaram-se violadas, de tal modo, que O Profeta,
de Kahlil Gibran (1923), avisava que "uma voz não pode carregar
a língua e os lábios que lhe dão asas. É sozinha que deve procurar o ar",
e a voz da ciência, que tem de ser respeitada, começou a comunicar saber que é
o planeta que já está em risco. É tempo de considerar solidários todos os
povos.
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