Por Telmo Verdelho
PREFÁCIOCELEBRANDO
A MEMÓRIA LITERÁRIA
DO CASTANHEIRO E DO SEU FRUTO (4)
8. A castanha e o
castanheiro saíram do quotidiano português, onde antes eram assíduos e
benfazejos. São agora uma realidade quase exótica. Entre os nossos
contemporâneos, fora das zonas limitadas do seu cultivo em regiões montanhosas,
poucos tiveram ou hão de ter o privilégio de conhecer essa árvore grande e
robusta, e de admirar a sua opulenta nobreza que deslumbra a vista e enche o
ânimo da esperança de bons frutos.
Do mesmo modo, poucos vão
beneficiando da regalia de apreciar e saborear as castanhas, em toda a sua gama
de gratos sabores, e como alimento memorial de civilização. Elas continuam a
aparecer nos supermercados pelos meses de inverno, como qualquer outra fruta,
que vem de longe, sem as reminiscências do campo e da sua cerimoniosa gestação
de longos meses, desde a flor até ao amadurecimento. E sobretudo sem as
saudosas lembranças da tradição do seu consumo, que era muitas vezes festivo,
naturalmente convivial, variado e quase sempre vivido como celebração cultural.
Eram apregoadas nas ruas ‒ "quentes e boas" ‒ e punham um sorriso nos
habitantes da cidade; alegravam os dias de S. Martinho na "magustal
fogueira", segundo a expressão de Almeida Garrett (Folhas Caídas); tinham
lugar indispensável na cesta da merenda, nos trabalhos de inverno e especialmente
na apanha da azeitona; acompanhavam a conversação da lareira, em convívios
íntimos ou em libações ruidosas de amizade e vizinhança. No estrelóquio à volta
da fogueira, as castanhas eram uma espécie de harmonizador ambiental, de bom
gosto e de bem-estar. No tempo em que as lareiras tinham um escano amplo e
familiar com mesa acoplada, vinham diretamente do pote ou do assador para serem
homenageadas e sublimadas com a parceria do vinho que alegra o coração dos
humanos. Camilo Castelo Branco dá notícia desse ritual num dos Doze casamentos
felizes:
"— Se eu não
receasse ser confiado, pedir-lhe-ia me contasse por que meios extraordinários a
Providência o enriqueceu.
– Isso sabe-o toda a
gente que me conhece, e o senhor também o pode saber; mas antes dos contos, que
não enchem barriga, vamos à ceia, que está na mesa, e depois conversaremos, com
o pichel do verdasco à beira e as castanhas na assadeira.
[...] Finda a ceia e a
oração, ergueu-se a mesa que engonçava no escano, e seguiram-se as libações
amiudadas com o excitante das castanhas, que estouravam e lourejavam na
assadeira pendente do caniço." (Doze Casamentos felizes, Sexto)
9. Na sombreada lembrança
daquele tempo, nas evocações literárias, refere-se com frequência o pormenor
das "castanhas que estourejavam". A explosão das castanhas, no
trânsito do assador ou da fogueira, era uma peripécia comum e previsível, mas
sempre insólita e divertida. Nesse tempo, em que o seu consumo era geral e
quotidiano, toda a gente conhecia, por experiência vivida, essa esperada
surpresa, com algum sabor de espetáculo, que trazia um suplemento de animação,
sobretudo nos magustos. Era uma experiência tão geral que ficou fixada numa
fórmula sentencial da língua portuguesa: "estalar / estourar / rebentar a
castanha na boca".
Esta "malícia"
da castanha tem registo muito remoto na memória literária. Em textos latinos da
Idade Média, no tempo em que a física ainda não tinha adivinhado a pressão
atmosférica, encontram-se descrições e explicações muito engenhosas para a graça
explosiva da castanha.
Uma das mais
interessantes pode ler-se na Crónica do franciscano Salimbene de Parma
(1221-c.1288). A propósito de um sermão muito contestado pelo público,
observava que essa gente era incapaz de conter os ventos da boa doutrina e por
isso fazia muito barulho. Se fossem sábios receberiam em pacífico silêncio o
sopro inspirador da palavra de Deus; mas eles, estultos e turbulentos, eram
como os terramotos que libertam os ventos aprisionados nos montes cavernosos e
fazem tremer a terra; e, melhor exemplo ainda, eram "como a castanha não
castrada, que tocada pelo fogo, saltando violentamente explode, provocando o
pavor entre os circunstantes. A metáfora pitoresca da "castanea non
castrata" é expressiva e muito subtil, nela cabe a experiência rural e uma
espécie de recreação entre a anatomia e a necessária preparação culinária:
«Patet exemplum in castanea non castrata, quae ex igne saltando violenter et
fortiter prosilit, pavorem circumsedentibus inmittendo».
A virtude
"desconstruidora" da castanha surge inesperadamente testemunhada por
S. Tomás de Aquino (1225-1274), numa elaborada glosa dos salmos. Trata-se do
comentário aos salmos de David. No Salmo 18 (antigo 17), o cantor bíblico
agradece ao Senhor que o libertou do rei Saul e dos seus inimigos, e canta
louvores à grande voz de Deus, que se faz ouvir em todas as vibrações
tonitruantes, nas nuvens do céu e nos elementos da terra. Tomás de Aquino lê e
interpreta o salmo numa longa e pormenorizada exegese. Considera o ribombar do
trovão, as impetuosas sonoridades da natureza, como uma espécie de ressonância
da omnipotente caridade divina: "inflammatio caritatis". Explica o
fenómeno com toda a ciência escolástica, observando na movimentação das nuvens,
a "inflação e crescimento dos vapores" que também se pode ver em
exemplos fáceis e comuns como a explosão das castanhas que, a seu modo,
participam também do "sopro divino": postas ao lume, o vapor começa a
gerar-se e pede mais largueza, quebra a casca resistente e sai com violência e
magno estampido:
«Aliquando vapor ille
siccus ex inflatione crescit, et quaerens maiorem locum facit dissolvere nubem
subito, et sonare ad modum viridium lignorum crepidantium in igne, vel ovorum
maxime; et hoc maxime apparet in castaneis, quibus in igne positis cum humidum
incipit resolvi, et maiorem locum quaerere, frangit testam resistentem, et cum
impetu et sono magno exit" (T. Aquinus, In psalmos Davidis expositio,
super psalmo 17).
Em pleno século XVII, era
ainda invocada a autoridade de Aristóteles para explicar a explosão das
castanhas e de tudo o que pudesse conter "gases quentes", quando
excitados pelo fogo (Daniel Sennert (1572-1637), Epitome naturalis scientiae,
Lib. 4, Cap. II).
A incontinência ventosa
da "castanha não castrada" também foi tema entre os humanistas e
motivou alguns discursos de bom espírito. Relembro um apólogo bem humorado do
italiano Leon Battista Alberti (1404-1472). Imitando uma brevíssima fábula de
Esopo, anota o violento protesto da castanha que, na emergência do seu
explosivo suspiro, em pleno pátio, exclamava: "não posso suportar, por
mais tempo, os calores da minha alma" ‒ "Castanea quom, suspirio
maximo edito, ex igne in mediam aulam prosilisset: "Non poteram - inquit -
tantos animi aestus diutius perferre" (Apologi Centum, XIV).
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