quinta-feira, 29 de outubro de 2020

CELEBRANDO A MEMÓRIA LITERÁRIA DO CASTANHEIRO E DO SEU FRUTO (4)

 

Por Telmo Verdelho

PREFÁCIO

CELEBRANDO A MEMÓRIA LITERÁRIA

DO CASTANHEIRO E DO SEU FRUTO (4)

8. A castanha e o castanheiro saíram do quotidiano português, onde antes eram assíduos e benfazejos. São agora uma realidade quase exótica. Entre os nossos contemporâneos, fora das zonas limitadas do seu cultivo em regiões montanhosas, poucos tiveram ou hão de ter o privilégio de conhecer essa árvore grande e robusta, e de admirar a sua opulenta nobreza que deslumbra a vista e enche o ânimo da esperança de bons frutos.

Do mesmo modo, poucos vão beneficiando da regalia de apreciar e saborear as castanhas, em toda a sua gama de gratos sabores, e como alimento memorial de civilização. Elas continuam a aparecer nos supermercados pelos meses de inverno, como qualquer outra fruta, que vem de longe, sem as reminiscências do campo e da sua cerimoniosa gestação de longos meses, desde a flor até ao amadurecimento. E sobretudo sem as saudosas lembranças da tradição do seu consumo, que era muitas vezes festivo, naturalmente convivial, variado e quase sempre vivido como celebração cultural. Eram apregoadas nas ruas ‒ "quentes e boas" ‒ e punham um sorriso nos habitantes da cidade; alegravam os dias de S. Martinho na "magustal fogueira", segundo a expressão de Almeida Garrett (Folhas Caídas); tinham lugar indispensável na cesta da merenda, nos trabalhos de inverno e especialmente na apanha da azeitona; acompanhavam a conversação da lareira, em convívios íntimos ou em libações ruidosas de amizade e vizinhança. No estrelóquio à volta da fogueira, as castanhas eram uma espécie de harmonizador ambiental, de bom gosto e de bem-estar. No tempo em que as lareiras tinham um escano amplo e familiar com mesa acoplada, vinham diretamente do pote ou do assador para serem homenageadas e sublimadas com a parceria do vinho que alegra o coração dos humanos. Camilo Castelo Branco dá notícia desse ritual num dos Doze casamentos felizes:

"— Se eu não receasse ser confiado, pedir-lhe-ia me contasse por que meios extraordinários a Providência o enriqueceu.

– Isso sabe-o toda a gente que me conhece, e o senhor também o pode saber; mas antes dos contos, que não enchem barriga, vamos à ceia, que está na mesa, e depois conversaremos, com o pichel do verdasco à beira e as castanhas na assadeira.

[...] Finda a ceia e a oração, ergueu-se a mesa que engonçava no escano, e seguiram-se as libações amiudadas com o excitante das castanhas, que estouravam e lourejavam na assadeira pendente do caniço." (Doze Casamentos felizes, Sexto)

 

9. Na sombreada lembrança daquele tempo, nas evocações literárias, refere-se com frequência o pormenor das "castanhas que estourejavam". A explosão das castanhas, no trânsito do assador ou da fogueira, era uma peripécia comum e previsível, mas sempre insólita e divertida. Nesse tempo, em que o seu consumo era geral e quotidiano, toda a gente conhecia, por experiência vivida, essa esperada surpresa, com algum sabor de espetáculo, que trazia um suplemento de animação, sobretudo nos magustos. Era uma experiência tão geral que ficou fixada numa fórmula sentencial da língua portuguesa: "estalar / estourar / rebentar a castanha na boca".

Esta "malícia" da castanha tem registo muito remoto na memória literária. Em textos latinos da Idade Média, no tempo em que a física ainda não tinha adivinhado a pressão atmosférica, encontram-se descrições e explicações muito engenhosas para a graça explosiva da castanha.

Uma das mais interessantes pode ler-se na Crónica do franciscano Salimbene de Parma (1221-c.1288). A propósito de um sermão muito contestado pelo público, observava que essa gente era incapaz de conter os ventos da boa doutrina e por isso fazia muito barulho. Se fossem sábios receberiam em pacífico silêncio o sopro inspirador da palavra de Deus; mas eles, estultos e turbulentos, eram como os terramotos que libertam os ventos aprisionados nos montes cavernosos e fazem tremer a terra; e, melhor exemplo ainda, eram "como a castanha não castrada, que tocada pelo fogo, saltando violentamente explode, provocando o pavor entre os circunstantes. A metáfora pitoresca da "castanea non castrata" é expressiva e muito subtil, nela cabe a experiência rural e uma espécie de recreação entre a anatomia e a necessária preparação culinária: «Patet exemplum in castanea non castrata, quae ex igne saltando violenter et fortiter prosilit, pavorem circumsedentibus inmittendo».

A virtude "desconstruidora" da castanha surge inesperadamente testemunhada por S. Tomás de Aquino (1225-1274), numa elaborada glosa dos salmos. Trata-se do comentário aos salmos de David. No Salmo 18 (antigo 17), o cantor bíblico agradece ao Senhor que o libertou do rei Saul e dos seus inimigos, e canta louvores à grande voz de Deus, que se faz ouvir em todas as vibrações tonitruantes, nas nuvens do céu e nos elementos da terra. Tomás de Aquino lê e interpreta o salmo numa longa e pormenorizada exegese. Considera o ribombar do trovão, as impetuosas sonoridades da natureza, como uma espécie de ressonância da omnipotente caridade divina: "inflammatio caritatis". Explica o fenómeno com toda a ciência escolástica, observando na movimentação das nuvens, a "inflação e crescimento dos vapores" que também se pode ver em exemplos fáceis e comuns como a explosão das castanhas que, a seu modo, participam também do "sopro divino": postas ao lume, o vapor começa a gerar-se e pede mais largueza, quebra a casca resistente e sai com violência e magno estampido:

«Aliquando vapor ille siccus ex inflatione crescit, et quaerens maiorem locum facit dissolvere nubem subito, et sonare ad modum viridium lignorum crepidantium in igne, vel ovorum maxime; et hoc maxime apparet in castaneis, quibus in igne positis cum humidum incipit resolvi, et maiorem locum quaerere, frangit testam resistentem, et cum impetu et sono magno exit" (T. Aquinus, In psalmos Davidis expositio, super psalmo 17).

Em pleno século XVII, era ainda invocada a autoridade de Aristóteles para explicar a explosão das castanhas e de tudo o que pudesse conter "gases quentes", quando excitados pelo fogo (Daniel Sennert (1572-1637), Epitome naturalis scientiae, Lib. 4, Cap. II).

A incontinência ventosa da "castanha não castrada" também foi tema entre os humanistas e motivou alguns discursos de bom espírito. Relembro um apólogo bem humorado do italiano Leon Battista Alberti (1404-1472). Imitando uma brevíssima fábula de Esopo, anota o violento protesto da castanha que, na emergência do seu explosivo suspiro, em pleno pátio, exclamava: "não posso suportar, por mais tempo, os calores da minha alma" ‒ "Castanea quom, suspirio maximo edito, ex igne in mediam aulam prosilisset: "Non poteram - inquit - tantos animi aestus diutius perferre" (Apologi Centum, XIV).

 (Continua)

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