ANTÓNIO MAGALHÃES
Estamos a
caminhar para os finais do mês de Setembro do ano de 2020.
Contra
todas as previsões otimistas de cartomantes, astrólogos, comunidade bruxa,
adivinhos e outros papa-lorpas, tem sido um ano péssimo.
As
autoridades Chinesas anunciavam em finais de Dezembro o surgimento de um novo
coronavírus. A Organização Mundial de Saúde recebia um comunicado acerca de
casos de pneumonia de origem desconhecida na cidade Chinesa de Whuam.
A
primeira morte por coronavírus foi anunciada a 11 de janeiro de 2020 pelas
autoridades Chinesas. A 13 de janeiro a OMS anunciava o primeiro caso de
infeção pelo novo coronavírus, agora conhecido como covid19, fora da China,
mais propriamente na Tailândia, por uma mulher que tinha regressado de Whuam.
A 11 de
Março de 2020 a OMS declarou o surto uma pandemia.
Na China
milhares de pessoas são infetadas pelo vírus, e centenas morrem diariamente
como consequência dessas infeções. No entanto, segundo as notícias da BBC, voos
provenientes da China, mais propriamente da cidade onde tudo parece ter
começado, Whuam, não têm qualquer controlo na chegada aos aeroportos, em termos
de testes aos seus passageiros, mesmo com a forte possibilidade de alguns
deles, se não a maioria, transportarem além de bagagem e bens pessoais, o vírus
que em muitíssimo pouco tempo se espalhará desenfreada e livremente.
Começa-se
a ter a verdadeira noção da pandemia à medida que pessoas infetadas pelo vírus
vão enchendo os hospitais, que por sua vez não estão preparados para a
verdadeira dimensão do problema.
Os
políticos têm que começar a tomar medidas para as quais, nem eles nem a
população estão verdadeiramente cientes ou conscientes das suas reais
consequências ou efeitos benéficos. Começam os confinamentos, as restrições, as
confusões entre direitos e liberdades e a urgência em controlar um vírus que se
espalha de uma maneira diabólica.
O governo
Britânico demora imenso tempo a tomar medidas mais drásticas afirmando
consistentemente não ser a altura certa para o fazer. Alguns “entendidos” fazem
comparações com o verdadeiro flagelo que acontece em Itália, afirmando que o
Reino-Unido está umas semanas atrasado no que respeita ao chamado pico da
pandemia, e baseados nessa teoria dizem não ser “ainda” o tempo de tomar
medidas, tais como confinamento, uso obrigatório de máscaras etc.
O Reino
Unido muito depressa passa a ser o número 1 em toda a Europa com o maior número
de infetados e de mortes como resultado da pandemia do covid 19.
É então
que se começa a impor o confinamento, quando o número de mortes por covid 19
vai já na casa dos milhares.

Faltam
equipamentos de proteção para os chamados trabalhadores da linha da frente.
Médicos e enfermeiros são obrigados a tratar doentes com o vírus sem o material
adequado à sua própria proteção. Mas os hospitais não são só compostos por
médicos e enfermeiros. Há um vasto número de pessoas, com trabalhos menos
visíveis, mas não menos importantes, que contribuem e muito para o
funcionamento desses hospitais e para o seu verdadeiro sucesso para que tudo
funcione. Toda esta gente, de um momento para o outro fica exposta ao contágio
sem que haja uma solução viável para diminuir os riscos que correm diariamente,
elas e eles e as suas famílias e amigos.
Surge o
medo. O pessoal que trabalha nos hospitais, lares, casas de saúde,
supermercados, motoristas, etc., têm receio de voltar para casa no fim do seu
turno, depois de terem estado expostos ao perigo, sem qualquer proteção, sem
saberem, no fim de um dia cansativo de trabalho, se levam com eles o vírus para
casa, para os que mais amam.
Muitos
não querem correr esse risco e ficam longe de filhos, pais, maridos, esposas,
namorados e namoradas etc.
Apesar
dos louváveis e reconhecidos esforços dos profissionais de saúde em resposta à
pandemia, o sistema em si, com as suas já naturais falhas, ficou virado do
avesso. O corona passou a ter prioridade em tudo. Cancelaram-se operações,
tratamentos de cancro, consultas cruciais e os postos médicos fecham as portas
na cara dos seus utentes e dão como alternativa consultas pelo telefone. Sem
lhes olhar para a cara…!
Quem
tenta, mesmo assim, marcar consulta pelo telefone, passa horas à espera de que
este seja atendido e quando isso, às vezes quase por milagre, acontece, acaba
por ser mal atendido. Na maioria das vezes…despachado.
E como,
mesmo em situações de pânico, agonia, e sofrimento, há sempre uns quantos
energúmenos, escroques e excremento da sociedade, a tentar tirar proveito da
desgraça, a criminalidade envolta do coronavírus aumentou drasticamente, porque
esses “scum bags” da sociedade tentaram, e em muitos casos conseguiram, lucrar
com o sofrimento e a dor, especialmente dos mais vulneráveis. Tem destas
coisas, a espécie.
Por aqui,
no Reino Unido, todas as quintas-feiras exatamente às 8 horas da noite as
pessoas vem às janelas, às varandas, portas ou mesmo na rua, e batem palmas aos
trabalhadores da linha da frente.
As palmas
são um bom incentivo, um reconhecimento e agradecimento, mas como dizia o meu
saudoso pai…Tum, tum não enche barriga. São precisas ações, e até ao momento,
as que se têm tomado têm o resultado de uma volta na montanha russa.
Começo a
sentir a pandemia por uma constante perturbação, um aperto no peito e uma
sensação de persistente preocupação com medo à mistura. Mais pelos que me são
queridos do que por mim mesmo.
Acordo
por volta das quatro da madrugada sempre com o mesmo aperto no peito, a mesma
sensação estranha de quem está a viver um pesadelo.
Os
primeiros pensamentos de uma manhã que está ainda por nascer vão para os meus
filhos e a minha esposa. Convém dizer primeiro, que nesta altura, meados de
Março de 2020, estou a trabalhar longe de casa e por isso acordo sozinho no meu
quarto alugado.
Será que
os rapazes estão sãos e salvos? O aperto intensifica-se ao pensar quando
poderão eles ficar infetados.
E a minha
companheira de uma vida? Estou preocupadíssimo com ela porque trabalha no
hospital e por isso está constantemente a arriscar. Falo com ela ao telefone,
faço mil e uma recomendações, mas no fundo nem eu acredito ou estou convicto
nos conselhos que lhe dou. Sugiro-lhe que não vá trabalhar. Responde-me
convictamente que o hospital não pode parar e que há pessoas em que a vida e a
saúde delas depende de todos aqueles que apesar de tudo mantém os hospitais a
funcionar. Admiro-a profundamente por isso.
O meu
contributo nesta pandemia foi feito em Luton, Inglaterra, numa companhia
chamada GKN Aerospace e que contribuiu conjuntamente com cerca de mais de uma
dezena de outras prestigiadas companhias no UK Ventilator Challenge, no fabrico
de ventiladores para o serviço nacional de saúde, NHS.
Já se
sabe que os hospitais, mesmo os melhores, não estavam preparados para atender e
salvar um número elevado de pacientes que começaram a chegar às dezenas e
centenas, daí que o governo, em conjunto com essas companhias, iniciou este
projeto por haver uma necessidade urgente de ventiladores.
Em cerca
de quatro semanas sou forçado a uma quarentena, quarentena que ao contrário do
que o nome possa supor só durou quinze dias. Depois voltei ao trabalho, três
dias depois perdi o trabalho, e uma semana depois estou a trabalhar em algo
totalmente diferente daquilo que era a minha profissão.
Ninguém
estava autorizado a mexer no que quer que fosse enquanto não tivesse a formação
e o devido certificado a confirmar que o engenheiro havia aprovado essa
formação. Havia quem demorasse mais e
quem demorasse menos a assimilar tudo o que era preciso saber. Estamos a falar
de um aparelho do qual a vida de uma pessoa dependia.
Consciente
disso, no meu tempo de espera até que houvesse um engenheiro disponível para me
dar a formação, coloquei toda a minha atenção nos que estavam já a receber essa
formação. Fiquei com sete olhos, tirei apontamentos, especialmente na parte dos
testes à peça, que eram os mais complicados. Quando chegou a minha vez, fui
aprovado nesse mesmo dia na parte da montagem e no dia seguinte nos testes. Não
porque eu fosse melhor do que os outros, apenas porque, além de ser pago, bem,
pelo trabalho, pela primeira vez o que estava aqui em questão não era só ser
profissional no que estava a fazer, mas acima de tudo consciente de que do meu
profissionalismo poderia ser salva uma vida. Ou muitas.
Não foi
uma tarefa fácil. O raio da máscara, a viseira, os óculos de proteção,
mandatório desde o momento em que se entrava no recinto da companhia e até que
se saía, eram como que uma entrave irritante sempre que o calor e o mau estar
provocados pelos apetrechos interferiam com o trabalho. Isto já para não falar
no raio dos óculos, embaciados à medida que respiro, durante quase todo o turno
de trabalho. Mas…em tempo de guerra não se limpam armas.
Tudo
parece muito complicado até começar a ser feito, mas depois de se iniciar o
trabalho, com concentração e o sentido de responsabilidade no que se faz, há
medida que se vai ganhando experiência, tudo se vai tornando mais claro, menos
complexo e mais óbvio.
A peça
que me foi designada testar regula todo o processo do ventilador depois de
construído, desde as diferentes pressões no processo respiratório às possíveis
fugas de ar etc.
A minha
função era testar as diferentes leituras correspondentes aos números aceitáveis
e mediante esse processo, aprovar ou rejeitar a peça que fora construída na
estacão prévia à minha.
Facilitaria
muito o meu trabalho se eu me cingisse apenas a essa regra. E regras são
regras, quem faz o que deve, a mais não é obrigado. Mas às vezes também é
preciso que em momentos cruciais se quebrem as regras. A consciência, e a
experiência também, diziam-me que cada peça que eu rejeitasse por não atingir as
leituras necessárias ao seu bom funcionamento, iria atrasar os objetivos a
alcançar no número de ventiladores prontos, e por isso, usando o meu treino na
montagem da peça, desdobrava-me em esforços para retificar cada componente no
sentido de conseguir as leituras que eram devidas. Desmontar, mudar peças,
voltar a montar, testar novamente…melhorou nas leituras de “air mix”, mas nas
de “no air mix” as cinco diferentes leituras exigidas não correspondem aos
números estipulados. Voltar a desmontar uma outra parte da peça, reajustar,
mudar este ou aquele componente por um novo, voltar a montar, testar…as cinco
leituras de “air mix” e as cinco de “no air mix” estão agora dentro dos limites
aceitáveis. Mais um teste às fugas de ar, umas vezes passa, outras não. É uma
correria, mas se rejeitasse todas as peças que me passam pelas mãos durante o
meu turno a estação seguinte iria atrasar, e a seguinte, por efeito de sucessão
a mesma coisa, e por aí adiante.
Desdobro-me
em esforços. De vez em quando, Kimberly pergunta-me, sem tirar os olhos do seu
trabalho, “How you getting on António?” e, às vezes mesmo com os níveis de
stress no máximo lá lhe respondo numa enganadora aparente calma, “All good, all
good, almost another one aproved…”
A
máscara, a viseira, os óculos a maior parte das vezes a embaciar e a dificultar
ainda mais e a pôr mais pressão no trabalho, o calor…Há quatro semanas que
certos colegas que reconheço pelas vozes, nunca lhes vi a cara.
Chego ao
fim de mais um turno e das trinta peças que deveria ter rejeitado reparei-as eu
e todas foram devidamente aprovadas.
O meu
team leader, Leo Santos, um Brasileiro de quem me tornei amigo, agradece-me o
esforço e a dedicação.
Estou
exausto, mas satisfeito, com uma sensação de dever cumprido.
Hoje foi
particularmente um dia quente. Uma onda de calor, dizem os entendidos.
Quando
entro no carro, retiro a máscara, a viseira, e puxo os óculos para a ponta da
cabeça. Passo um lenço na testa. Foi um dia longo. O relógio despertou às 4 e
15 da manhã. O turno começou às 5.30. Desde que o relógio despertou até iniciar
o turno, quinze minutos são para ficar às voltas na cama a lamentar e ao mesmo
tempo mentalizar a crueldade de ter que sair da cama quando o sono parecia
finalmente ter chegado. Dez minutos para as higienes matinais, a seguir vestir
às pressas e descer as escadas para me encontrar na cozinha com o meu amigo Dai
Mal para um cafezinho rápido. Vivemos na mesma casa e partilhamos a boleia. Uma
semana no meu carro, na semana seguinte no dele. Esta semana é no dele.
O resto
do tempo, das 4.45 até às 5.30 o início do turno, é para a viagem e as
incertezas do tráfego, por se aproximar muito de Londres. Mais um cafezinho e
dois dedos de conversa com os colegas da companhia e pegar no trabalho que foi
deixado pelo turno da noite, para lhe dar continuidade.
Nove
horas e quinze minutos depois de o relógio ter despertado chego ao fim de mais
um dia de trabalho.
Estou tão
exausto que quase me sinto fundir com o assento do carro. O sol bate no vidro
da frente, Dai Mal abre os outros vidros e à medida que o carro vai ganhando
velocidade, a aragem mesmo que quente, sabe bem ao bater na face enquanto que
ao mesmo tempo despenteia o cabelo. O pólen das árvores que vem junto com a
aragem quente entra-me nas narinas, e com o sol a bater-me mesmo de frente,
sinto uma espécie de comichão no nariz que quase me sobe aos olhos. De repente
corro a cobrir a face com a dobra do cotovelo e inevitavelmente dou um espirro.
Nos tempos que correm espirrar ou tossir quase que é considerado um crime.
Dai Mal,
sem desviar o olhar atento na estrada, com um sorriso malandro diz-me, “Make
sure you are accurate on your tests…you may need a ventilator yourself, soon…”
Normalmente
não sou de compreensão lenta, mas…o cansaço, o calor extremo, o mormaço do
vento que entra pelas janelas fazem com que fique uns escassos segundos a
assimilar a piada do meu amigo.
Muito
lentamente vou soltando um sorriso que se vai rasgando de orelha a orelha. De
repente, os dois, em conjunto, soltamos uma gargalhada.
Remato,
“You are absolutely right about that.”
Até ao
momento em que este texto foi escrito o coronavírus já infetou cerca de trinta
e dois milhões de pessoas, (casos conhecidos, mas estima-se que os números
sejam bem mais elevados do que isso) e matou quase um milhão de infetados.
A maior
parte dos países afetados, depois de um aparente controlo do vírus, preparam-se
agora para a chamada segunda vaga…
A saga
continua…
Ninguém
tem certezas acerca do desfecho desta pandemia. No entanto, eu tenho a certeza
de que no ano 2120 não existirei. Somos todos defuntos a longo prazo. A
manter-se a tendência de uma pandemia em cem anos, e a acreditar que a
humanidade irá vencer a batalha das alterações climáticas, crucial à
continuação da sua sobrevivência no planeta terra, espero que na próxima
pandemia se possam tirar algumas lições dos nossos erros no então longínquo ano
de 2020.
Get it?
António Magalhães
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