António Magalhães
Técnico aeroespacial, Sheffield
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A
primeira foi que, “Não precisei de emigrar para ter tudo o que preciso”.
Apeteceu-lhe
responder…, mas não o fez, pensou apenas para consigo, “Parabéns. Quantos
poderão dizer, mesmo os que parecem ter tudo, que de facto têm tudo o que
precisam.”
A outra
coisa foi que, e essa magoou, se era a intenção, magoar, “Os emigrantes têm a
mania…”
Os três
pontinhos não são para deixar adivinhar o resto que a frase ainda continha,
porque de facto não conteve mais nada do que apenas foi escrito, mas servem
para deixar ao critério de quem na possibilidade de vir a ler o texto, possa
deduzir, ainda que apenas em pensamento, o que a frase queria dizer, dizendo
apenas o que disse.
É certo
que houve um abraço a querer estabilizar saudades de uma boa meia dúzia de anos
de ausência, mas fosse pelas marcas que essa ausência vai deixando de maneira
invisível e que só se irão notar ou perceber quando a presença regressa, mesmo
que temporariamente, ou fosse porque entretanto, nesses anos de afastamento a
amizade tivesse sofrido o seu natural arrefecimento, que é apenas fruto da vida
que os absorveu, nesse entretanto, a perspetiva que tinham acerca da vida e do
que ela contém, também mudou.
Só assim
se explica esse arrefecimento de uma amizade que outrora parecera infindável,
intocável. Quer dizer… não que não tivessem tido as suas divergências no
passado, mas nenhuma dessas divergências teria magoado tanto e tão
profundamente como esta, talvez porque desta vez havia um espaço de ausência de
uma boa meia dúzia de anos, e um espaço curtíssimo entre o reencontro e as
frases ditas quase de maneira maliciosa.
Quando
regressou ao estrangeiro levou consigo as frases que não esquecem, não porque
magoaram, mas sim por tristeza, desilusão, e quanto à amizade, manteve-a, nem
que fosse apenas e só no seu coração, porque lembrou-se de Vinícius de Moraes
na quadra, “Enfim, depois de tanto erro passado - tantas retaliações, tanto
perigo – eis que ressurge noutro o velho amigo – nunca perdido, sempre
reencontrado.
Mesmo
assim foi moendo na sua cabeça aquele sentimento que por ser novo, pois estava
entre uma espécie de limbo entre uma amizade que afinal, talvez nunca tivesse
sido tão intensa como ambos o chegaram a julgar, e uma ofensa que apesar de
tudo, declarada perderia força por falta de fundamento.
A carta,
não lhe pegamos pelo princípio. Não é preciso.
…e quando
te digo que a vida de emigrante é vida dura e muito sofrida, meramente naqueles
primeiros tempos de adaptação a uma nova realidade, não quero, como nunca quis,
menosprezar ou diminuir os teus esforços, os teus sacrifícios e a tua não menos
dolorosa e sofrida vida, tu que ficaste por terras Lusas, mas quero que tenhas
em conta que apesar do respeito e compreensão que tenho pelos teus sacrifícios,
gostaria de te lembrar que em qualquer parte do mundo onde se vá, todos teremos
de lutar, todos teremos que fazer sacrifícios para que, com o tempo e o
resultado da luta possamos colher os frutos que semeamos.
Mas
lembrar-te-ia apenas que, se em matéria de esforço e labuta estamos idênticos,
o que nos diferencia a nós emigrantes é a saudade que por vezes, em momentos de
maior angústia, nos corrói por dentro.
As
saudades que temos de todos vocês, das vossas vozes, das gargalhadas, da boa
disposição, das euforias dos momentos de confraternização, e até mesmo os
momentos de discórdia, que os tivemos algumas vezes em discussões tão banais
como o futebol ou a política, política essa da qual nenhum de nós alguma vez
foi um grande aficionado, e outras ninharias que sempre acabamos por trazer à
razão e ao entendimento, às vezes na taberna do senhor António enquanto no
assador de barro um chouriço estalava à medida que a gordura que afinal era de
onde lhe vinha o sabor, ia pingando misturando-se com o álcool a arder, ou
mesmo sentados no jardim que fica defronte à camara municipal.
Sim, e
porque falo nesse jardim, aproveito o ensejo para te falar de uma outra saudade
de emigrante, e que é o cheiro único e imensurável dessa relva onde em noites
de amena cavaqueira nos sentávamos a incomodar e a abafar os cantares dos
grilos, que sabíamos estarem algures por ali também eles no seu dialeto de
grilos, quiçá, tal como nós, em animadas conversas de temas que a grilos dizem
respeito. É que…sabes, aqui, a mais de dois mil e quinhentos quilómetros desse
local de que te falo, há uma nostalgia que advém dessa saudade intensa, e
também há jardins, também há relva, também há grilos e cigarras e formigas
silenciosas, atarefadas e trabalhadoras, mas o cheiro único e imensurável de
que te falei, não é o mesmo, e por isso meu amigo eu te digo que uma vez mais
estás em vantagem. Que estás em vantagem nas coisas mais simples da vida, coisas
essas que eu cheguei a dar por garantidas e hoje ao pensar nelas, ao
sentir-lhes a falta, há um bater no peito bem mais acelerado, um formigueiro na
barriga, e uma tristeza que só não se transforma em lágrimas porque até mesmo
essas, com o passar do tempo e as vicissitudes da vida, também elas vão
secando.
Talvez
não saibas, mas os princípios de um emigrante são preenchidos por um constante
sobressalto, às vezes uma espécie de medo que se vai disfarçando com sorrisos
forçados, com uma bravura e uma força que não é se não um instinto de
sobrevivência.
Sabes,
sobressalto quando vais começar um novo trabalho, pois por essa razão
emigraste, para tentares dar o teu corpo à luta na esperança de uma vida
melhor, e à medida que cada passo que dás e que te encurta a distância entre o
trabalho que estás para começar, o teu coração pula de tal maneira ansioso que
até chegas a ter medo que quem te circunda, quando por ti passa, o possa ouvir,
pois sabes que se está a chegar o momento de enfrentares pessoas, com quem a
partir de agora vais ter de conviver por razões profissionais e elas não sabem
uma palavra da tua língua mãe, e tu, da deles sabes apenas umas quantas
palavras que não chegam a ser suficientes para formar uma frase.
Hás de
conseguir. Sabes que vai ser uma luta, mas, dizes a ti mesmo mais vezes do que
aquelas em que acreditas, que hás de conseguir.
Sobressalto
quanto toca o telefone e constatas que a chamada é de Portugal e antes de
qualquer sentimento de alívio ou alegria, o primeiro que te assola é o medo. O
medo de más noticias, o medo de que te digam, como a mim me disseram…” O teu
pai foi-se embora.” E o coração bate, e o coração pula, e o coração sofre e
também ele chora desesperado.
É a vida,
dizem. Não, não é. É a morte.
Mesmo
assim, apraz-me também dizer-te, ou se quiseres, advertir-te, que não acredites
em tudo o que ouves da parte de alguns emigrantes, especialmente daqueles que
vêm à terra tentar mostrar uma vida que eles dizem viver lá nos quintos da
Gronelândia, vida essa que só lhes existe numa ilusão que eles mesmo criam, nos
dias em que lhes duram as férias e as vaidades, e depois, passado o dia e
passada a romaria, regressam à dura realidade porque, como já te disse, em
qualquer parte do mundo, a vida não é facilitada só porque se salta do ramo de
uma árvore para a outra, por muito mais alto que esteja esse ramo para onde se
saltou.
Em
qualquer parte do mundo é preciso trabalhar e fazer sacrifícios e tomar opções
de vida, para que essa vida possa ser vivida de maneira decente e por vezes
traga as suas compensações também. E isso é regra de quem emigra, mas também de
quem por terras Lusas adapta os mesmos princípios.
Uma vez
mais me socorro daquilo que escreveu Vinícius de Moraes, “Meu senhor, tende
piedade dos que andam de bonde, e sonham no longo percurso com automóveis,
apartamentos…”
Quase
sempre esses são os que dão mau nome à nossa raça Lusitânia. E sempre, esses
são os de quem nada podes esperar, porque o mau caracter não os abandona só
porque mudaram de país. São ciumentos, são falsos, invejosos, traiçoeiros,
mesquinhos, e o pior disso tudo é que são tudo isso a maior parte das vezes com
um sorriso de lobo em pele de cordeiro, nos lábios. São os que andam de bonde e
no percurso da viagem sonham com longos passeios de automóvel…!
Mas
também há os que nunca esqueceram os princípios difíceis e por vezes temerosos,
e mantêm a sua humildade e bom caracter e deles se pode esperar uma amizade
genuína. Vivem a vida na sua realidade e por isso ela, a vida, lhes vai
sorrindo porque arregaçaram as mangas e foram à luta. São esses os verdadeiros
emigrantes, os que nos dão o bom nome.
Fico
feliz porque não precisaste de sair de Portugal para que a vida te sorrisse.
Para que, mesmo como tu o afirmaste, teres tudo o que precisas. Ninguém tem
tudo o que precisa, mas ter o essencial, e acima de tudo ter o mais básico,
como um coração justo e bondoso, já é ter muito. Por isso te digo que quem tem
rancor nas palavras que diz e no que deseja, não tem paz e não tendo paz, por
muito que tenha ou que pensa que tem, não tem nada.
E quanto
aos emigrantes que têm a mania…esses também teriam essa mania a que te referes,
mesmo que não tivessem emigrado, porque esses…viajam em carruagens enquanto
sonham com longos passeios de automóvel.
Assinado,
Este teu amigo…Emigrante.
Aurélio
dos Santos Florindo
(Retalhos
do Quotidiano, páginas 104 – 105 - 106)
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