terça-feira, 23 de junho de 2020

MAZAGÃO VELHO - memórias do Embaixador Francisco Seixas da Costa


Memórias de um embaixador português no Brasil

Um facto relevante a assinalar: No Brasil, pós-independência, ninguém se empenhou, furiosamente, em destruir/arrasar todos os vestígios deixados pelos portugueses, como se verificou nalgumas das antigas colónias africanas, em particular Angola que, em 1974/75, era considerado o segundo país mais desenvolvido de todo o continente africano, apenas suplantado (naquela época) pela África do Sul!.. Curiosa diferença, não é?!




“Num certo dia de Janeiro de 2006, sendo embaixador no Brasil, recebi do governador do Estado do Amapá um convite para estar presente numa solenidade, na qual iria ser feita uma homenagem aos fundadores de Mazagão Velho.
À época, eu tinha uma ideia muito vaga da história da localidade. Mazagão Velho foi criada, em 1775, para apoiar a fortaleza de São José de Macapá, na defesa do norte do Pará. O nome advém do facto de ter sido fundada pelos antigos ocupantes da fortaleza de Mazagão (actual El Jadida), em Marrocos, a última que os portugueses haviam sido forçados a abandonar, já em 1769, dentre as várias que, desde o século XVI, haviam sido criadas na costa marroquina.
É impressionante pensar, nos dias de hoje, como Lisboa tomou a decisão de enviar, recém-saído da costa africana, depois de uma passagem pela Europa, um contingente mais de 300 famílias mistas de portugueses e familiares marroquinos, para a fronteira norte brasileira.
Em termos práticos, pode concluir-se que terá sido a eficaz protecção dessa entrada do Amazonas que contribuiu para a preservação da soberania setentrional do que é actualmente o Brasil.
O Amapá, para quem não saiba, tem fronteira com ... a França! De facto, do outro lado do rio Amazonas, está a Guiana Francesa. É, no plano político, um Estado relativamente recente do Brasil, fruto de uma divisão do Estado do Pará, ocorrida em 1943.


248 anos da vila de Mazagão Velho – Alcinéa Cavalcante
Vila de Mazagão Velho - BRASIL


A data do evento era-me, contudo, bastante inconveniente: tratava-se do dia seguinte às eleições presidenciais em Portugal, a cujo encerramento da votação eu queria estar presente na capital federal. Isso obrigou-me a sair de Brasília bastante tarde e chegar ao Amapá já bem dentro da madrugada, naqueles aviões nocturnos que a insuperável imaginação brasileira crismou de "corujões", porque andam de noite, com preços mais baratos e que vão pousando, como um autocarro, por vários aeroportos, ao longo de milhares de quilómetros de território, o que convertia a viagem numa jornada longuíssima.
Foi a amável e reiterada pressão telefónica do governador Waldir Goes que me convenceu a ir. Cheguei a Macapá, capital do Amapá, cerca da três da manhã, acompanhado por um diplomata marroquino, conselheiro cultural da sua embaixada. Esperava-nos uma amável recepção e, para nossa surpresa, uma ceia, com convidados, no hotel, tudo feito sem grandes pressas. No final, foi-nos dito que às sete horas da manhã (!!!) passariam a buscar-nos.. Se dormi uma hora, sob o ruído musical que vinha das ruas de Macapá, depois do lauto repasto, foi já muito!
De manhã, fomos levados do hotel ao porto, onde embarcámos com destino a Mazagão Velho. A viagem foi problemática: a meio do rio, o barco avariou e foi preciso mandar vir uma nova embarcação. O governador Waldir Goes estava furioso com o incidente, que perturbava o “cerimonial” previsto. Com tudo resolvido, a expedição continuou. Já perto do nosso destino, passámos para uma piroga, com remadores, em que havia músicos/cantores, com tambores e violas, que entoavam modinhas antigas, da tradição luso-mourisca do século XVIII, que é a imagem de marca da localidade. Uma experiência inesquecível!
Quer eu, quer o diplomata marroquino estávamos comovidos. E mais ficámos ao aproximar-nos de Mazagão Velho, ao ver que a população da cidade nos aguardava na margem do braço de rio em que chegámos, chefiada pelo prefeito José Carlos "Marmitão" (nome que condiz, à justa, com a dimensão da amável figura), enquadrada por garbosos cavaleiros, vestidos com trajes que estavam na memória afectiva local e que reproduziam as lutas entre os cristãos e os muçulmanos.
O evento teve como ponto alto a inauguração de um memorial onde ficaram depositados os restos mortais dos portugueses e das suas famílias marroquinas, descobertos em escavações recentes.
O calor era imenso. Lembro-me de, na cerimónia, ter proferido um discurso com os olhos a arder, pelo sal que vinha do suor que me caía da testa. Seguiu-se um lauto almoço, no seio de uma multidão entusiasmada com o relevo momentâneo dado à sua terra. Hoje, sabendo o que poderia ter perdido se não tivesse ido nesse dia ao Amapá, ficaria arrependido para toda a vida
No regresso, bem mais longo, por terra, eu tinha um pedido a fazer: queria ainda visitar o Zerão. O que é o Zerão? É o estádio de Macapá, cuja linha divisória a meio é o equador. Tirar uma fotografia, com os pés em cada hemisfério, era uma experiência que eu não queria perder por nada.
No dia seguinte, com o governador, fui visitar a fantástica fortaleza de São José de Macapá, construída no tempo colonial português, um marco de soberania que, felizmente, nunca teve de disparar um único tiro, durante toda a sua história. Prometi então - e vim a cumprir - mandar o conselheiro cultural português no Brasil, o pianista Adriano Jordão, para fazer um concerto naquele belíssimo espaço, convertido em espaço cultural. Não foi fácil concretizar a iniciativa: os pianos não abundavam no Amapá! Mas essas são contas de outro rosário.

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