Na primeira fotografia Estaline
aparece cercado de quatro camaradas; na segunda, datada de 23 anos mais tarde,
três deles desapareceram; na terceira, aparece sozinho num cartão postal. Os
que faziam parte do selecto círculo interno que perderam a simpatia do líder
foram simplesmente apagados das imagens oficiais: a manipulação fotográfica era
chave para reescrever a história soviética.
Nota de Tempo Caminhado
In "Público" - 2020.06.15
Ainda não vimos nada!
É triste confessar, mas ainda estamos para ver até
onde vão os revisores da História. Uma coisa é certa: com a ajuda dos movimentos
anti-racistas, a colaboração de esquerdistas, a covardia de tanta gente de bem
e o metabolismo habitual dos reaccionários, o movimento de correcção da
História veio para ficar.
Serão anos de destruição de símbolos, de substituição
de heróis, de censura de livros e de demolição de esculturas. Até de
rectificação de monumentos. Além da revisão de programas escolares e da
reescrita de manuais.
Tudo, com a consequente censura de livros considerados
impróprios, seguida da substituição por novos livros estimados científicos,
objectivos, democráticos e igualitários. A pujança deste movimento através do
mundo é tal que nada conseguirá temperar os ânimos triunfadores dos novos
censores, transformados em juízes da moral e árbitros da História.
Serão criadas comissões de correcção, com a missão de
rever os manuais de História (e outras disciplinas sensíveis como o Português,
a Literatura, a Geografia, o Meio Ambiente, as Relações Internacionais…), a fim
de expurgar a visão bondosa do colonialismo, as interpretações glorificadoras
dos descobrimentos e os símbolos de domínio branco, cristão, europeu e
capitalista.
Comissões purificadoras procederão ao inventário das
ruas e locais que devem mudar de nome, porque glorificam o papel dos
colonialistas e dos traficantes de escravos. Farão ainda o levantamento das
obras de arte públicas que prestam homenagem à política imperialista, assim
como aos seus agentes. Já começou, aliás, com a substituição do Museu dos
Descobrimentos pelo Memorial da Escravatura.
Teremos autoridades que tudo farão para retirar os
objectos antes que as hordas cheguem e será o máximo de coragem de que serão
capazes. Alguns concordarão com o seu depósito em pavilhões de sucata. Outros
ainda deixarão destruir, gesto que incluirão na pasta de problemas resolvidos.
Entretanto, os Centros Comerciais Colombo e Vasco da
Gama esperam pela hora fatal da mudança de nome.
Praças, ruas e avenidas das Descobertas, dos
Descobrimentos e dos Navegantes, que abundam em Portugal, serão brevemente
mudadas.
Preparemo-nos, pois, para remover monumentos com
Albuquerque, Gama, Dias, Cão, Cabral, Magalhães e outros, além de,
evidentemente, o Infante D. Henrique, o primeiro a passar no cadafalso. Luís de
Camões e Fernando Pessoa terão o devido óbito. Os que cantaram os feitos dos
exploradores e dos negreiros são tão perniciosos quanto os próprios. Talvez até
mais, pois forjaram a identidade e deram sentido aos mitos da nação valente e
imortal.
Esperemos para liquidar a toponímia que aluda a Serpa
Pinto, Ivens, Capelo e Mouzinho, heróis entre os mais recentes facínoras. Sem
esquecer, seguramente, uns notáveis heróis do colonialismo, Kaúlza de Arriaga,
Costa Gomes, António de Spínola, Rosa Coutinho, Otelo Saraiva de Carvalho,
Mário Tomé e Vasco Lourenço.
Não serão esquecidos os cineastas, compositores,
pintores, escultores, escritores e arquitectos que, nas suas obras, elogiaram
os colonialistas, cúmplices da escravatura, do genocídio e do racismo. Filmes e
livros serão retirados do mercado.
Pinturas murais, azulejos, esculturas, baixos-relevos,
frescos e painéis de todas as espécies serão destruídos ou cobertos de cal e
ácido. Outras comissões terão o encargo de proceder ao levantamento das obras
de arte e do património com origem na África, na Ásia e na América Latina e que
se encontram em Portugal, em mãos privadas ou em instituições públicas, a fim
de as remeter prontamente aos países donde são provenientes.
Os principais monumentos erectos em homenagem à
expansão, a começar pelos Jerónimos e pela Torre de Belém, serão restaurados
com o cuidado de lhes retirar os elementos de identidade colonialista. Os
memoriais de homenagem aos mortos em guerras do Ultramar serão reconstruídos a
fim de serem transformados em edifícios de denúncia do racismo. Não há liberdade
nem igualdade enquanto estes símbolos sobreviverem.
Muitos pensam que a História é feita de progresso e
desenvolvimento. De crescimento e melhoramento. Esperam que se caminhe do
preconceito para o rigor. Do mito para o facto. Da submissão para a liberdade.
Infelizmente, tal não é verdade. Não é sempre verdade.
Republicanos, corporativistas, fascistas, comunistas e até democratas
mostraram, nos últimos séculos, que se dedicaram com interesse à revisão
selectiva da História, assim como à censura e à manipulação.
E, se quisermos ir mais longe no tempo, não faltam
exemplos. Quando os revolucionários franceses rebaptizaram a Catedral de
Estrasburgo, passando a designá-la por Templo da Razão, não estavam a aumentar
o grau de racionalidade das sociedades. Quando o altar-mor de Notre Dame foi
chamado de Altar da Liberdade, caminharam alegremente da superstição para o
preconceito.
E quando os bolchevistas ocuparam a Catedral de Kazab,
em São Petersburgo e apelidaram o edifício de Museu das Religiões e do Ateísmo,
não procuravam certamente a liberdade e o pluralismo. E também podemos convocar
os Iconoclastas de Istambul, os Daesh de Palmira ou os Taliban de Bamiyan que
destruíram símbolos, combateram a religião e tentaram apropriar-se tanto do
presente como do passado.
Os senhores do seu tempo, monarcas, generais, bispos,
políticos, capitalistas, deputados e sindicalistas gostam de marcar a
sociedade, romper com o passado e afastar fantasmas. Deuses e comendadores,
santos e revolucionários, habitam os seus pesadelos. Quem quer exercer o poder
sobre o presente tem de destruir o passado.
Muitos de nós pensávamos, há cinquenta anos, que era
necessário rever os manuais, repensar os mitos, submeter as crenças à prova do
estudo, lutar contra a proclamação autoritária e defender com todas as forças o
debate livre.
É possível que, a muitos, tenha ocorrido que faltava
substituir uma ortodoxia dogmática por outra. Mas, para outros, o espírito era
o de confronto de ideias, de debate permanente e de submissão à crítica
pública.
O que hoje se receia é a nova dogmática feita de novos
preconceitos. Não tenhamos ilusões.
Se as democracias não souberem resistir a esta espécie
de vaga que se denomina libertadora e igualitária, mergulharão rapidamente em
novas eras obscurantistas.
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