Júlia Serra
Em
tempo de crise é necessário haver poucas falas e muita ponderação no que se diz
e como se diz. Falar pausadamente e sempre com a intenção de dizer a verdade, é
isso que se espera dos governantes e dos responsáveis, para que possam pautar o
mesmo sentido de rigor e de autenticidade nos meios de comunicação.
É
normal que as medidas de confinamento e o medo causado pelo Covid 19
desencadeiem ansiedade e receios na maior parte das pessoas, portanto, uma voz
serena e fiável pode ser um calmante esperançoso, para se enfrentar o dia
seguinte. Assim, um amontoado de informação, que geralmente surge após debates
parlamentares ou reuniões, só aumenta a confusão e adensa o clima. O pior é que
a própria legislação é também ela reajustada/revolucionada do dia para a noite,
deixando transparecer insegurança e fragilidades que não deveriam acontecer.
Com frequência, os títulos dos jornais colocam em destaque determinada
informação que o próprio corpo da notícia desmente. Estes dias, lia-se” os
hospitais receberam 300 ventiladores”, mas no desenvolvimento explicavam que
iam receber até ao dia dezanove.
Cuidado
com os verbos! Uma coisa é o verbo conjugado no passado, o que revela que esse
material já estava ao serviço de; outra coisa, e bem diferente, é uso perifrástico
“vai receber”, numa perspetiva futura. Portanto, o melhor é anunciar na
presentificação do ato, para evitar imprecisões e recuos. A modalidade
epistémica pode ainda conter uma probabilidade ou certeza e, neste caso,
exige-se a certeza. Uma vez mais, atenção ao verbo, sua conjugação e valores
(aspetual e modal). Com os verbos se fala verdade e se mente. Às vezes, deve
dar jeito a mentira, para ofuscar a verdade. Eça de Queirós brinda-nos a Relíquia
com este subtítulo “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da
fantasia”, mas aqui o autor queria intencionalmente referir a verdade,
embora num discurso fantasioso à sua maneira, para não ser tão contundente.
Hoje, o que se pretende é, eufemisticamente dizendo, iludir, vendendo fantasias
e contornando a verdade; na linguagem garrettiana é a mentira compulsiva. A
comédia deste autor (Almeida Garrett) Falar Verdade A Mentir, cuja ação,
por acaso, se desenrola em Lisboa, conta-nos a história de Duarte, um mentiroso
compulsivo, que pretendia casar-se com Amália, mas foi apanhado a mentir pelo
futuro sogro. Valeu-lhe o José Félix, para remediar a situação e receber algum
dinheiro em troca. Enfim, mentiras que originaram grandes confusões, favores -
do séc. XIX ao XXI.
O
problema é que a verdade deve assentar em factos reais, sempre baseada na
evidência e nunca resultante de um desejo ou de uma necessidade; por isso, a
verdade não condiz com os políticos, mas devia condizer e fundamentar a política;
a verdade pode doer mais e destruir sistemas maquiavélicos, por isso, é
ofuscada pela mentira que ganha votos e perpetua poder.
Antigamente,
dizia-se que quem não falasse verdade corria o risco de perder os dentes. As
crianças ainda acreditam um pouco nisso: se mente, perde um dente. Imaginem
vocês se houvesse uma inspeção à boca de determinadas pessoas! Certamente, que
os dentes e sorrisos que vemos na televisão são implantes ou, então, até
tiveram direito a nova dentadura.
O
mais importante é ter cuidado com os verbos e muito tento na língua, porque,
afinal, a austeridade ainda não acabou. Alguma vez tivemos vacas gordas?
É
um jeitinho na língua para ajeitar a política.
JS
Sem comentários:
Enviar um comentário