segunda-feira, 13 de abril de 2020

Um jeitinho na língua para ajeitar a política


                                      
Júlia Serra

Em tempo de crise é necessário haver poucas falas e muita ponderação no que se diz e como se diz. Falar pausadamente e sempre com a intenção de dizer a verdade, é isso que se espera dos governantes e dos responsáveis, para que possam pautar o mesmo sentido de rigor e de autenticidade nos meios de comunicação.
É normal que as medidas de confinamento e o medo causado pelo Covid 19 desencadeiem ansiedade e receios na maior parte das pessoas, portanto, uma voz serena e fiável pode ser um calmante esperançoso, para se enfrentar o dia seguinte. Assim, um amontoado de informação, que geralmente surge após debates parlamentares ou reuniões, só aumenta a confusão e adensa o clima. O pior é que a própria legislação é também ela reajustada/revolucionada do dia para a noite, deixando transparecer insegurança e fragilidades que não deveriam acontecer. Com frequência, os títulos dos jornais colocam em destaque determinada informação que o próprio corpo da notícia desmente. Estes dias, lia-se” os hospitais receberam 300 ventiladores”, mas no desenvolvimento explicavam que iam receber até ao dia dezanove.
Cuidado com os verbos! Uma coisa é o verbo conjugado no passado, o que revela que esse material já estava ao serviço de; outra coisa, e bem diferente, é uso perifrástico “vai receber”, numa perspetiva futura. Portanto, o melhor é anunciar na presentificação do ato, para evitar imprecisões e recuos. A modalidade epistémica pode ainda conter uma probabilidade ou certeza e, neste caso, exige-se a certeza. Uma vez mais, atenção ao verbo, sua conjugação e valores (aspetual e modal). Com os verbos se fala verdade e se mente. Às vezes, deve dar jeito a mentira, para ofuscar a verdade. Eça de Queirós brinda-nos a Relíquia com este subtítulo Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia, mas aqui o autor queria intencionalmente referir a verdade, embora num discurso fantasioso à sua maneira, para não ser tão contundente. Hoje, o que se pretende é, eufemisticamente dizendo, iludir, vendendo fantasias e contornando a verdade; na linguagem garrettiana é a mentira compulsiva. A comédia deste autor (Almeida Garrett) Falar Verdade A Mentir, cuja ação, por acaso, se desenrola em Lisboa, conta-nos a história de Duarte, um mentiroso compulsivo, que pretendia casar-se com Amália, mas foi apanhado a mentir pelo futuro sogro. Valeu-lhe o José Félix, para remediar a situação e receber algum dinheiro em troca. Enfim, mentiras que originaram grandes confusões, favores - do séc. XIX ao XXI.
O problema é que a verdade deve assentar em factos reais, sempre baseada na evidência e nunca resultante de um desejo ou de uma necessidade; por isso, a verdade não condiz com os políticos, mas devia condizer e fundamentar a política; a verdade pode doer mais e destruir sistemas maquiavélicos, por isso, é ofuscada pela mentira que ganha votos e perpetua poder.
Antigamente, dizia-se que quem não falasse verdade corria o risco de perder os dentes. As crianças ainda acreditam um pouco nisso: se mente, perde um dente. Imaginem vocês se houvesse uma inspeção à boca de determinadas pessoas! Certamente, que os dentes e sorrisos que vemos na televisão são implantes ou, então, até tiveram direito a nova dentadura.
O mais importante é ter cuidado com os verbos e muito tento na língua, porque, afinal, a austeridade ainda não acabou. Alguma vez tivemos vacas gordas?
É um jeitinho na língua para ajeitar a política.

              JS

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