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QUE COISA SÃO AS NUVENS 2020-04-25
Um
facto ao qual não nos deveríamos habituar é este: que na informação sobre as
vítimas da pandemia venha associada a sua idade e a indicação de que eram
afetados por outras patologias. Não nos damos conta, mas com isso descemos, de
forma irreversível, alguns degraus daquele precioso património comum a que
chamamos civilização. Não discuto que a intenção possa ser virtuosa, pois supostamente
visa serenar os outros segmentos da população. Mas certas serenidades induzidas
têm de ser questionadas, sobretudo se reforçam a vulnerabilidade de quem já tem
de suportar tanto. É fundamental que para as nossas sociedades seja claro que
há coisas piores do que a infeção com o vírus da covid-19. Se os velhos são
reduzidos a números, e a números com escassa relevância humana e social,
podemos até superar airosamente a crise sanitária, mas sairemos diminuídos como
comunidade. Rodarão as estações. A esta primavera suceder-se-á outra,
porventura, mais risonha, distendida e ampla. Mas nunca mais respiraremos da
mesma maneira.
É que não se
envelhece para morrer. Penso no modo extraordinário e preciso como o livro do
Génesis descreve a caminhada do patriarca Abraão. “Abraão expirou... velho e
saciado de dias” (Gen 25:8). Sim, não se envelhece para morrer. Envelhecemos
para nos saciarmos de vida e desse modo sentir que, mesmo escassa ou vacilante,
a vida é o milagre mais espantoso, mais indescritível e pródigo que nos tocou
em sorte. Com razão, James Hilmann escreveu: “Envelhecendo eu revelo o meu
carácter, não a minha morte.” A velhice é um laboratório de vida presente e não
só passada, uma escola onde se aprofunda o significado da esperança e do amor.
Quando estes sentimentos, despidos já das contaminações do cálculo, distantes
do enganador afã dos objetivos que lhe colocámos, revelam finalmente a sua
natureza. O que é o amor em si, o que é a esperança sem mais — os velhos
sabem-no melhor. E, contudo, resistimos tanto a perguntar-lhes, como se essa
transmissão de sabedoria não nos fosse indispensável. Que os velhos se tenham
tornado uma abandonada periferia — e os condicionamentos da pandemia podem
ainda dramaticamente acentuá-lo — diz muito da crise interior que mina o nosso
tempo.
Há cem anos, no
início dos anos 20 do século passado, Max Weber escrevia que, diferentemente
das gerações que nos precederam, “os homens já não morrem saciados de vida, mas
simplesmente cansados”. O dogmatismo com que hoje encaramos a produtividade, a
eficiência e o consumo tornou-nos uma sociedade desligada de dimensões
essenciais. Nela, os velhos perderam o seu papel social, pois deixámos de
valorizar o depósito de conhecimento e experiência que representam, e passamos
a apostar todas as nossas fichas numa ideia de progresso baseada na mudança
contínua, sem freios nem memória.
Precisamos de
nos reconciliar com a velhice. É um erro grosseiro representar os velhos como
um peso: experimentam-no quotidianamente as famílias que sem a colaboração dos
avós não saberiam como conjugar as vidas profissionais com a vida familiar;
sabem-no as crianças e os jovens que nos mais velhos encontram disponível um
bem que mais ninguém lhes oferece com aquela gratuidade: tempo; constatam-no
todos os espaços de convivência humana que dos velhos recebem testemunhos de
sabedoria, afeto e resiliência, pois eles felizmente têm olhos para aquilo que
mais ninguém vê. O antiquíssimo Livro do Levítico recorda-nos este imperativo
de futuro: “Ficarás de pé diante do que tem cabelos brancos; honrarás o rosto
de quem é ancião” (Lev 19:32).
Texto profundo e esclarecedor sobre a velhice.
ResponderEliminarOs velhos é que suportam a maior parte dos jovens que não têm empregos nem esperança no futuro; por isso, deve haver reconhecimento e gratidão para que os pais e os avós "não se cansem da vida".