António Magalhães |
Há apenas um responsável por esta
crónica, e esse responsável não é, com toda a certeza, o autor que vai
carregando nas teclas do computador para formar as palavras que as mesmas dão à
estampa no ecrã. Não, o autor apenas deixa que o sentimento de nostalgia flua
pelas veias do seu corpo, passe pelo coração, onde a partir deste os
sentimentos se deixam catalisar para depois explodirem nas emoções com que se
formarão as palavras que compõem este texto.
No entanto, às vezes não nos podemos
deixar levar totalmente por essas emoções, como esta por exemplo, onde cabe bem
neste texto os dizeres do povo quando afirma que é preciso, em certas alturas
da vida, fazer das tripas coração, e dar a volta ao texto. Que é como quem diz,
da nostalgia eliminar o sentimento de tristeza e saudade que a maior parte das
vezes esta nos traz, e da saudade lembrar apenas os momentos que de uma ou
outra maneira nos fazem sorrir, às vezes, rir às gargalhadas, receita que
segundo alguns entendidos na matéria afirmam ser um bom remédio para os
problemas de fígado. Mas, se rir às gargalhadas não faz bem ao fígado, certezas
temos que faz bem à alma, afugenta os maus agoiros e rejuvenesce.
Não poderia falar de gargalhadas
assim sem, ao eliminar da nostalgia o sentimento de tristeza e transformá-lo em
alegria, que à memória me viesse alguns dos protagonistas que a saudade da qual
não me posso livrar apesar de tudo, me fizesse lembrar de momentos que agora,
passados tantos anos por eles, os considere como relíquias de uma preciosidade
sem igual.
Como não me considero autor desta
crónica, sou apenas o veículo de inspiração de uma nostalgia que manipulei,
vem-me à memória uma dessas relíquias do passado onde um dos protagonistas é o
amigo Raúl Reis, o Zé de S. Tomé, e sem certezas do que afirmo, pela simples
razão de que já lá vão mais de quarenta anos passados, o Diogo, uma vez que era
nessa altura e durante muitos anos que se seguiram, um dos meus melhores
amigos.
Dos fragmentos desta pequena
história, do que me lembro, é que frequentávamos o segundo ano do ciclo
preparatório, estávamos numa aula de trabalhos manuais, e o Raúl, no seu jeito
único, que era o de um puto alegre, de uma gargalhada espontânea e que
irradiava sempre boa disposição, em suma, contagiante, contava que na noite
anterior um casal amigo dos pais havia estado lá em casa porque era o
aniversário do amigo do pai do Raúl, e o pai ao dar os parabéns ao amigo terá
dito…”Desejo que dures tantos anos como quantos palmos tem a ponte 25 de
Abril.” E dito isto, o Raúl desatou numa gargalhada, a tal gargalhada única, só
sua, tão contagiante que, pela parte do Zé de S. Tomé e do Diogo, (se é que o
Diogo se encontrava nesta cena) não sei, mas pela minha parte, fartei-me de
rir, não porque nessa altura, confesso, tivesse achado alguma piada à história,
mas sim porque a maneira como o Raúl a contou e a sua reação, foi como tirar a
cavilha de uma granada e lançá-la às cegas, salvo seja a comparação.
Como na altura o Zé de S. Tomé
tivesse ficado por uns segundos a coçar a nuca, como quem procura no arranhar
do caco a resposta para algo que parecia ter sido engraçado à brava, mas que
ele não havia percebido muito bem, o Raúl voltou a atacar…”Já viste, se ele
durar tantos anos como quantos palmos tem a ponte 25 de Abril, nunca mais morre
pá…”
E não é que o Raul estivesse, (penso
eu) a desejar a morte prematura do amigo de seu pai, mas por vezes, até a
eternidade nos parece tempo de mais…
Esta pequena passagem, mesmo dos
quarenta e alguns anos que dela nos distancia, ficou-me gravada na memória, e
se assim foi, alguma razão teria havido. É que, a vida, o que é se não as
memórias, boas ou más, dos momentos e das pessoas com quem nos cruzamos, dos
lugares por onde palmilhamos o respirar do ar com que crescemos e nos fizemos
as pessoas que somos.
Da história que o Raúl contou,
durante anos dela retirei a tal frase que muito o fez rir, e a nós os seus amigos, por acréscimo, e usei-a muitas vezes quando
desejei os parabéns a amigos e familiares, “Feliz aniversário e desejo que
dures tantos anos como quantos palmos tem a ponte 25 de Abril”.
De resto, esta história faz-me
lembrar a anedota do Mandinho, não que nelas haja uma qualquer semelhança de
conteúdo, mas sim porque uma e outra foram, no que diz respeito ao efeito rir
como resultado desse mesmo conteúdo, de efeito retardado.
Mas, para que se entenda melhor esta
afirmação teremos que conhecer a anedota do Mandinho contada tal e qual como
foi contada há mais de quarenta anos. “Dois malucos num manicómio chegaram à
conclusão de que estavam curados. Para provar a sua teoria decidiram fazer um
teste a eles mesmos. Meia dúzia de tijolos empilhados em duas colunas
separadas, uma tábua por cima a uni-las a improvisar um balcão. Balcão de
farmácia convém dizer. O maluco cliente chega perto do balcão e diz ao maluco
farmacêutico, - 1 quilo de cimento por favor… - responde o maluco farmacêutico,
- traz frasco…?
E a anedota do Mandinho foi apenas
rematada por uma gargalhada. A razão pela qual nessa altura não esbocei sequer
um sorriso, por muito amarelo que fosse, é que havia uma enorme diferença entre
a gargalhada do Mandinho e a do Raúl. A gargalhada do Mandinho apesar de
enfadonha era também sem vida. A do Raúl era uma gargalhada com vida. Uma
gargalhada que se poderia assemelhar a uma espécie de música de fanfarra onde
as cornetas, o bater do bombo e dos pratos, culmina num fim apoteótico
espalhando alegria num raio de quilómetros.
Não obstante o exagero, serve a
comparação para justificar a minha risada no que diz respeito à história do
Raúl, que em termos de entendimento imediato, justificasse uma espontaneidade
de gargalhada do que o conteúdo da mesma assim o permitisse, porque a graça
genuína da história bem como da anedota só veio muito mais tarde, muito embora,
na anedota do Mandinho, confesso que só achei piada à mesma cerca de dez anos
depois.
Aqui se prova, penso eu, que uma boa
história ou uma boa anedota pode espalhar um leque de boa disposição e alegria
se o contador tiver a capacidade de ele mesmo soltar uma gargalhada genuína,
contagiosa. Assim como a do Raúl.
Já agora, convém esclarecer que me
refiro ao Raúl de onze ou doze anos de idade, o mesmo Raúl a quem um dia eu
cheguei a desejar enfiar-lhe um braço pelas goelas abaixo, e virá-lo do avesso,
mesmo sendo bons amigos nessa altura, mas ele teve o descalabre de falhar um
golo com a baliza aberta. E nessa altura, com doze anos de idade, essas coisas
mexem connosco…
O Raúl Reis de agora, continua a ter
a minha estima e amizade que será sem dúvida eterna, mas porque a vida tem
destas coisas, mesmo trocando frases de email um com o outro, há anos que não
nos vemos pessoalmente, por isso, a gargalhada que dele me lembro é a do puto
de onze ou doze anos de idade. Talvez onze e doze, uma vez que frequentamos na
mesma turma dois anos de ciclo preparatório.
Reafirmo o que disse no início desta
crónica, se há um responsável pela mesma, esse responsável é a nostalgia que ao
despertar no meu coração este sentimento forte de saudade, eu a manipulei e
converti em memórias agradáveis, porque para tristezas já bem nos basta os dias
tácitos e arcanos com que todos temos vivido nos últimos tempos.
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