sexta-feira, 3 de abril de 2020

Camisa de noite (de homem)


Jorge Lage

Há assuntos que parecem não ter grande interesse num primeiro momento, mas, cada texto que escrevo procura sempre trazer a sua mensagem, pedagógica, social ou cultural. Desde muito novo aprendi que a «Cultura» é tudo aquilo que resta, depois de tudo o mais se ter perdido. Só quem compreende bem o alcance desta ideia genérica se preocupa com a nossa cultura. Como tenho reafirmado, a nossa chapa matricial da nossa cultura foi narrada, elevada e conservada pelo povo que somos. Revolta-me que gente totalitária, que negue a nossa cultura e a nossa História. Cada tempo histórico vale por si e nunca gente de pensamento único poderá ser árbitro neste campo. A História é e será implacável com essa gente. Se dúvidas houvesse podemos olhar para os setenta anos de estalinismo. Bem reescreveram a história russa, bem apagaram figuras menos ortodoxas para com a ditadura comunista e bem silenciaram vozes desafinadas. Tudo volta ao seu devido lugar. Isto para vos dizer que muitos documentos e memórias que nos rodeiam que para o vulgo parecem ter o destino do caixote do lixo, ganham uma importância primordial. Uma fotografia velha, um papel ou um livro velho, até de assentos pessoais, um utensílio ou um tosco objecto pode ajudar a reescrever a história local ou nacional. 
Recebo com a periodicidade mensal a peça do mês do Museu de Silgueiros – Viseu e a última foi uma camisa de noite de homem. Ainda a conservo na minha memória da infância e juventude. Hoje tornaram-se raras e daí serem guardadas por museus ou coleccionadores. Só homens abastados ou com pergaminhos usavam as camisas de noite. Os homens do povo dormiam em ceroulas quando tinham cama e os mais pobres pernoitavam com a roupa que traziam no corpo durante o dia. As mulheres do povo dormiam em combinação que usavam durante o dia por baixo do vestido ou da saia. Hoje estão popularizados os pijamas para ambos os sexos. Na nota explicativa o Museu de Silgueiros refere: «A camisa se dormir de homem é peça rara (…). Nos finais do séc. XIX nas classes sociais privilegiadas e economicamente mais abastadas (…). As senhoras cultivavam o pudor com muito empenho pelo que esconder o corpo dos próprios maridos era (…) aconselhado. Eles procediam do mesmo modo, pelo que ambos usavam camisas para dormir compridas um pouco abaixo do joelho, feitas de linho, (…) na do homem havia que acautelar um importante pormenor: uma abertura redonda no lugar certo, para salvaguardar o momento do ato gerador de vidas, sem atentar contra o pudor durante uma vida inteira. A esposa também já trazia no seu enxoval de noivado um lençol com um buraco semelhante, aberto no sítio adequado. Deitada sob este lençol, deixava ao cuidado do marido o trabalho de acertar buraco com buraco. E assim se chegava ao fim da vida podendo dizer-se com verdade: - O meu marido nunca me viu o corpo.»


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