Alunos
do Colégio Português (LUANDA) criam hábitos de leitura
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JOÃO PEDRO MARQUES OBSERVADOR |
É tão histórica a atitude dos brancos que toleravam o comércio de homens
como a dos que passaram a considerá-lo incompatível com a civilização e a olhar
os negreiros como Alexandre Herculano os olhava
Não estive em directo no último Prós e Contras. A
minha participação nesse programa limitou-se a uma pequena intervenção filmada e
gravada uns dias antes, na qual eu disse
duas coisas: em primeiro lugar que há um exagero na susceptibilidade e
reactividade de várias pessoas negras, de forma que qualquer reparo que lhes
seja feito é imediatamente visto e sentido como uma manifestação de racismo;
afirmei, em segundo lugar, que, num cômputo geral, Portugal não é racista e que
é errada a teoria muito difundida segundo a qual o país teria forçosamente de o
ser por ter estado longamente envolvido no tráfico transatlântico de escravos e
num império colonial. O historiador Francisco Bethencourt, que esteve em directo no Prós e
Contras, não gostou dessa
minha intervenção. Considerou que ela revelava “enorme insensibilidade ao
fenómeno racista” e que era inaceitável por ser um “processo de branqueamento
dos problemas racistas”. Seria, além disso, errada por eu (alegadamente) querer
“dizer que o passado é o passado e não tem qualquer reflexo no presente”.
Mas Francisco Bethencourt está a ver mal e a pensar
pior. O facto de Portugal ter estado envolvido no tráfico de escravos, de ter
tido um império colonial e de, em determinado momento da sua história, ter tido
uma política orientada segundo ideologias e sentimentos racistas, não significa
que os tenha agora. As sociedades podem arrepiar caminho, e muitas vezes
fazem-no. Pense-se, por exemplo — e talvez seja esse o melhor exemplo —, nas
atitudes ocidentais face à escravatura. Durante três a quatro séculos as
sociedades europeias que estabeleceram colónias nas Américas estiveram
profundamente envolvidas no tráfico de escravos e na exploração do trabalho de
africanos em plantações, minas, etc., e conviveram com isso sem grandes
objecções ou questionamentos. Mas a partir do último terço do século XVIII
essas mesmas sociedades começaram a inverter a sua visão e a sua prática, no
que à escravatura diz respeito. É preciso relembrar mais uma vez que foram as
sociedades ocidentais que primeiro a rejeitaram e combateram. Depois da sua
abolição houve outras formas de coerção e de exploração violenta do trabalho?
Sim, houve. Mas também dessas práticas as sociedades ocidentais se foram
demarcando e desviando. Francisco Bethencourt não vê esse lado positivo da
História, ou se o vê desvaloriza-o. Já lhe fiz esse reparo em artigos a que preferiu não responder e volto
a fazê-lo aqui. Bethencourt acusa-me e a outros de fazermos “branqueamentos”
sem se dar conta de que é ele que faz óbvios “escurecimentos”. Não tem a visão
calibrada. É uma espécie de permanente advogado de acusação do passado.
De qualquer modo, o que importa dizer e sublinhar é
que não ficamos marcados para todo o sempre e de forma indelével por antigas
práticas condenáveis. Ao contrário do que Francisco Bethencourt pensa, não
estou com isto a rejeitar o peso e a importância da história. Estou apenas a
tentar que as pessoas olhem para um quadro mais completo, mais pleno, do que
aquele que muitas vezes lhes é mostrado. É que se o tráfico de escravos é
história, a sua abolição e os valores que a ela se associaram também o são. É
tanto história o navio negreiro que carrega 300 escravos em Luanda como o
esforço de um Sá da Bandeira para pôr fim à escravatura. É tão importante a
data da chegada dos primeiros escravos negros a Lagos, como aquela em que
Portugal começou efectivamente a apresar navios negreiros no mar. É tão
histórica a atitude dos brancos que toleravam o comércio de homens como a dos
que passaram a abominá-lo, a considerá-lo incompatível com a civilização, e a
olhar os negreiros como Alexandre Herculano os olhava, isto é, como criaturas a
quem se devia “negar o sal e o lume, a água e a hospitalidade” e das quais se
devia fugir “como de empestados”. Francisco Bethencourt estará eventualmente
esquecido de que houve gente no século XIX que escreveu nos jornais, discursou
e legislou nas Cortes, ou andou nos navios de cruzeiro a combater pela
libertação dos escravos negros. Isso também faz parte da nossa história e
reverte ou atenua o que de lamentável havia na história anterior.
E o que neste contexto é válido para Portugal é igualmente
válido para muitos outros países e situações. Pense-se, por exemplo, no caso
alemão. Não é pelo facto de ter existido nas décadas de 1930-40 um regime
hitleriano, com todas as suas violências e atrocidades, que a Alemanha tem
actualmente de ser nazi. Estou firmemente convencido de que o não é e de os
alemães, no seu conjunto, o não são, o que não quer dizer que não existam nazis
entre eles. O mesmo se passa quanto ao racismo entre nós. Portugal não é,
globalmente falando, um país racista, o que não exclui que existam portugueses
que o são. Mas a nossa história colonial não nos condena inapelavelmente ao
racismo. Tivemos um império? Sim, mas já não temos. Envolvemo-nos no tráfico de
escravos? Envolvemos, mas há muito que já não estamos envolvidos. Tudo isso
está no passado. Esse passado deixou marcas? Sim, sem dúvida, mas é preciso
perceber que também dinamizou diversas alterações ao nível das ideias, das
sensibilidades e dos procedimentos.
Talvez seja por isso que o teor de racismo em Portugal
é relativamente baixo a acreditar num recente estudo da União Europeia (Being
Black in the EU). Esse estudo passou
despercebido porque não resultou naquilo que os auto-proclamados anti-racistas
querem ouvir, mas é muito interessante porque mostra que tanto Portugal como o
Reino Unido — que também teve um império colonial e um envolvimento extenso e
profundo na escravatura —, apresentam níveis diminutos de comportamento racista
quando comparados com países como a Finlândia ou o Luxemburgo, que não tiveram
impérios coloniais nem envolvimento no comércio negreiro. Ou seja, uma coisa
não é necessariamente consequência da outra. É por todas estas razões que
Portugal não é nem pode ser prisioneiro das partes negras da sua história. As
pessoas demarcam-se, inflectem, rejeitam, mudam, e as sociedades também. Mas
para o percebermos é preciso abrir os olhos, pôr o cérebro a trabalhar e pensar
fora da caixa, em vez de nos limitarmos a repetir chavões.
PS: Não
quero terminar este artigo sem referir que, na sua aparição no Prós e Contras,
Francisco Bethencourt foi pouco rigoroso com factos e números, o que é sempre
um pecado num historiador. A sua afirmação de que “Portugal esteve envolvido no
tráfico de seis milhões de escravos” para as Américas, por exemplo, está
errada, como já referi por diversas vezes. Resulta do facto de ter adicionado os quantitativos
de Portugal (4,5 milhões) aos do Brasil independente (1,3 milhões) e de ter
arredondado para cima, o que mostra bem em que sentido vai o viés ou
parcialidade da sua visão. É o tal “escurecimento” da história a que eu me
referi acima.
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