Nuno Costa
Santos revisita, numa crónica, a obra do autor que foi contista, poeta e
romancista autobiográfico. Mas foi também um mestre na arte do diário, que
praticou entre 1941 e 1993.
Miguel
Torga, pseudónimo de Adolfo Correia da Rocha, nasceu em São Martinho de Anta,
Vila Real, a 12 de Agosto de 1907, e morreu em Coimbra, a 17 de Janeiro de
1995, com 87 anos
Cada um tem o seu Torga. O meu é o dos diários. É
neles que topo tudo o que me interessa no escritor: a sua aspereza
constitucional tornada literatura. O seu pendor reflexivo capaz de pensar os
homens e a arte de um modo direto e árido, como a planta que escolheu para
apelido do seu pseudónimo. Outros preferem o Torga contista de Os
Bichos, livro de todas as estantes, ou o dos Contos da Montanha.
Outros ainda o poeta ou o do romance autobiográfico, A Criação do Mundo,
publicado em cinco volumes, entre os anos de 1937 e 1981. Os géneros aqui
alinhados iam escalando dentro dele sem significativa programação. No volume IV
do diário, escreveu: “Quando a natureza desobedece às suas leis, é que tem
milagres à vista. Poema, conto, romance? Não sei. Quem no mundo menos sabe dos
mistérios da criação é o próprio artista”.
Nos seus diários, projeto iniciado no início
dos anos 40 do século passado, encontramos a exaltação da sua terra, de uma
ruralidade esquecida, uma desconfiança dos centros culturais, uma
reflexão própria sobre a arte literária (e outras). Ao contrário do que
acontece noutros géneros que praticou, é raro encontrar um lugar-comum nas
entradas. Uma rima forçada. Há a busca de um pensamento próprio, acerado,
avançando e recuando conforme a quantidade de inquietações e o encontro com
algumas certezas pessoais.
Por detrás da assertividade das entradas, sente-se o
peso da ansiedade, título do primeiro livro de poemas do autor, excluído da sua
bibliografia. A ansiedade de quem abandonou Deus mas nunca o largou (“Deus. O
pesadelo dos meus dias. Tive sempre a coragem de o negar, mas nunca a força de
o esquecer”). O combate para encontrar um sentido, que nunca lhe foi oferecido:
“A minha luta é para encontrar o centro, o núcleo de toda uma infinidade de
justificações, que superficialmente parecem satisfazer-me e são, afinal, folhas
caducas do meu tronco”. A dúvida — uma dúvida funda — contrastante com a imagem
que dele se tem. Em 27 de Julho de 1984 escreveu: “O meu drama foi viver a vida
a dar passadas firmes e irreversíveis a duvidar sempre de mim”. Ficava
espantado com o que classificou de escribas bem-pensantes dentro dos quais “nem
a mais pequena sombra de dúvida lhes trava os passos”.
Apesar de ter feito parte da Presença, o seu caminho
sempre foi o do lobo, não o das estepes mas o das serras, dos montes, das
ravinas, dos abismos. O do rapaz pobre, o do emigrante (para o Brasil). O do
homem que achava que para se escrever era preciso viver. O do solitário e
cúmplice observador do seu povo transmontano, aquele que encontra em terras
pedregosas uma possibilidade da sobrevivência. O crente no telurismo, atento
aos animais (os humanos também). Falava do esquecimento da capital em relação a
tudo o que não é da capital: “Lisboa, 19 de Dezembro de 1983 — A distância a que
todos estes alfacinhas com quem converso estão do país! Ignoram-no de tal
modo que se tem a impressão de que nunca o sentiram na raiz da alma”. Chama-os
de portugueses que habitam uma “reserva demarcada pelo suor do resto de
Portugal”. Torga foi-se, a reserva persiste.
Suor. Uma das palavras que podem definir a sua vontade
em conhecer e viajar (“Aqui ando num pânico fervor a revisitar estas terras
velhas de Portugal”). E o labor da sua escrita múltipla, desenhada em paralelo
ao seu ofício de médico, esforço de uma pena-enxada assente em apoquentações
sociais mas sempre desconfiada de acenos políticos fáceis (“Coimbra, 3 de
Outubro de 1979: “Telefonema dum prócere político. Parecia uma namorada do lado
de lá da linha. Mas quanto mais ele adoçava as palavras mais eu lhes senti o
travor da insinceridade”).
Deixou de esperar grande coisa da humanidade e da
História (“A História é uma paixão dos homens e uma ironia dos deuses. (…)
Sempre que nela floresce a esperança, frutifica a desilusão”). Amava Portugal
mas, à semelhança de tantos outros intelectuais lusos, lamentava-o, chamando-o
de país “que tem tem homens exemplares mas que não servem de exemplo”. Em
geral, os portugueses pareciam-lhe — com razão, diga-se — fanáticos, teatrais,
exclamativos, pouco pluralistas (“Para se elogiar Cesário, diz-se mal de
Pessanha”).
Andarilho por terras lusas, considerava ser decisivo
conhecer o território (algo raro ainda hoje entre os autores) e fazer-lhe um
radiografia profunda, objetivando defeitos e virtudes. Em 1991, disse do país
que se iam desfigurando, “invadido por ondas de turistas de calção e sandália”.
Imagine-se o que diria hoje. Alma progressista, podia passar por conservador. O
entusiasmo europeu provocou-lhe sempre ceticismo. Chegou a escrever: “Somos
agora oficialmente europeus de primeira, espanhóis de segunda e portugueses de
terceira”. Achava a enxurrada informativa pouco esclarecedora. Entrada do
volume IV: “Tanto jornal, tanta rádio, tanta agência de informações, e
nunca a humanidade viveu tão às cegas. (…) A verdade, agora, é uma espécie de
sombra da mentira”. Espécie de antecipação do conceito de fake news.
Nele, é claro, morava a contradição de quem muito
pensa. Duvidava declaradamente de si mas, nos últimos anos, classificou-se como
inconformado, subversivo, “mas com regras de afeto e civilidade”. Se isso lhe
foi suficiente para garantir um balanço feliz? Não se sabe. Possivelmente não.
De um espírito conflituoso consigo e com o mundo não se esperava outro
apontamento que não este: “Sim, fui infeliz porque tive a sina de ser
autêntico”. Celebremos, passados 25 anos da sua morte, essa autenticidade.
Nuno Costa Santos é escritor e
argumentista. É autor de livros como “Céu Nublado com Boas Abertas”,
“Morrer é Não Ter Nada nas Mãos” e “A Mais Absurda das Religiões” e de peças de
teatro como “Mundo Distante” e “Em Mudanças”. Criou uma personagem chamada
melancómico (atualmente na Antena 3). É diretor da
revista literária Grotta e do Encontro Arquipélago de Escritores.
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