Luís
Filipe Torgal* - OBSERVADOR
O
ardiloso engenho curricular "Autonomia e Flexibilidade Escolar"
tornou a escola num processo kafkiano e numa Torre de Babel onde ninguém se
entende, com instrumentos opacos, absurdos e inexequíveis.
O
Governo e os seus leais funcionários do Ministério da Educação, pressionados
pelas organizações internacionais e por uma nebulosa ideologia igualitarista
escorada em pretextos economicistas, decidiram declarar guerra ao insucesso
escolar. Para isso, criaram um novo «eduquês» que apelidaram de autonomia e flexibilidade
escolar dos ensinos básico e secundário — designação desvendada num pacote
prolixo de diplomas mais ou menos herméticos plagiados de documentos
curriculares provenientes de meia dúzia de países mais ilustrados e prósperos
do que Portugal e inspirados nas filosofias da Escola Moderna.
A
Escola Moderna não é invenção nova, pois remonta ao início do século XX. Foi
uma notável filosofia educativa teorizada por diversos pedagogos e bafejada por
ideologias anarquistas e socialistas. Ajudou a combater o ensino elitista,
magistral, teórico, confessional, misógino, empedernido e repressivo de outros
tempos. Abraçou extraordinários desígnios humanistas já incorporados nos
sistemas educativos contemporâneos. Mas também conceções controversas,
românticas e lunáticas. Por exemplo, José Pacheco, missionário nacional da
Escola Moderna e criador da Escola da Ponte, a qual, entretanto, deixou para
pregar a sua boa nova no Brasil, defende, nutrido de certezas, uma escola sem
divisão de ciclos de ensino, sem turmas, nem aulas, sem horários, nem testes,
sem exames, nem reprovações, onde os alunos brincam a aprender e são felizes.
Os políticos que nos governam ainda não arriscaram promulgar este modo final da
história da educação.
De
todo o modo, algumas das teorias, crenças, métodos e técnicas psicopedagógicas
mais arrojadas da Escola Moderna têm sido experimentadas na educação
pré-escolar e também no 1.º ciclo do ensino básico. Nestes níveis, os
educadores e professores regem, em cada ano, uma turma composta por um número
limitado de crianças com quem partilham muitas horas diárias durante um ou
mesmo quatro anos letivos. Estes professores tornam-se para os seus alunos
segundos pais ou mães, ofertando muitas vezes a essas crianças o afeto e até o
amor que elas nunca tiveram em casa. Por isso, têm condições mais favoráveis
para mediar estas crianças, ao longo dos seus primeiros 10 anos de vida, de
modo a elas obterem conhecimentos, capacidades, atitudes e valores essenciais.
Todavia, a partir do 2.º ciclo do ensino básico, quase tudo se altera. Termina
a monodocência. Os alunos passam a ter múltiplas disciplinas lecionadas por
diversos professores. Muitos dos novos docentes convivem com os seus alunos
apenas 50 ou 100 minutos semanais. Estes professores, ao longo do ano letivo,
têm bem mais de 100 alunos de níveis e tipos de ensino distintos e de origens
socioeconómicas diferenciadas. O volume e o grau de profundidade dos
conhecimentos a estudar tornam-se mais extensos, densos e complexos.
Podem
estes últimos professores desenvolver com os seus alunos «pedagogias
construtivistas» sistemáticas e proporcionar-lhes um ensino «lúdico» e
individualizado? Podem estes professores avaliar os seus educandos segundo os
modelos de avaliação usados pelos educadores do pré-escolar ou dos professores
do 1.º ciclo? Não, não podem. As realidades da educação pré-escolar e do 1.º
ciclo do ensino básico mudam do 2.º para o 3.º ciclo e voltam a alterar-se do
3.º ciclo para o secundário. As realidades e problemas enfrentados pelos
professores variam em função dos níveis de ensino, das disciplinas, teóricas ou
práticas, dos tipos de ensino, regular ou profissional, que lecionam, do número
e das características dos alunos com quem trabalham. Ignorar tais factos é
incorrer num lamentável equívoco.
Por
esta razão, o ardiloso engenho curricular Autonomia e Flexibilidade Escolar
tornou a escola num processo kafkiano e numa Torre de Babel onde ninguém se
entende. Ninguém se entende e poucos vislumbram a forma e o conteúdo da maioria
das medidas e instrumentos de trabalho fabricados com a intenção de,
alegadamente, promoverem melhores aprendizagens e avaliações mais rigorosas.
Entre outras razões, porque essas medidas e instrumentos são opacos, absurdos e
inexequíveis, nas escolas atuais e no sistema educativo vigente.
A
linguagem de cada agente da escola muda em função das suas responsabilidades. O
Governo, os seus fiéis funcionários e os «pedagogos de gabinete» comprometidos
com o Ministério da Educação ordenam o cumprimento das políticas educativas que
engendraram, mas não sabem como as executar. Os inspetores escolares pressionam
as escolas para cumprir o «eduquês» da tutela, mas ignoram como o concretizar.
Os formadores encartados do Ministério da Educação foram formatados e são
ressarcidos para doutrinar os professores no novo «evangelho» que aqueles
também desconhecem como operacionalizar. Os diferentes professores não enxergam
processos de realizar as diretrizes vertidas no novo aparato educativo legal.
Os diretores escolares — há muito arredados da sala de aula –, comprimidos pela
tutela, pelos inspetores e os professores, batem-se pelo cumprimento das normas
legais vertidas na manhosa Autonomia e Flexibilidade Escolar, também eles sem
saberem que caminhos ou vielas seguir para satisfazer os seus enigmáticos
desígnios.
Assim
vai a escola pública, transformada num patético laboratório de políticas
educativas negligentes e incongruentes, onde os alunos e os professores assumem
o papel de cobaias. Quais as consequências de toda esta fantasia? Descrédito do
conhecimento, sucesso educativo fraudulento, reprodução de assimetrias sociais
— circunstâncias que se vão tornando mais explícitas entre professores, alunos
e encarregados de educação, embora sejam menos percecionadas ou então
olimpicamente ignoradas pela opinião pública e a opinião publicada.
*Professor
de História em Oliveira do Hospital, mestre em História Económica e Social
Contemporânea e doutorado em Estudos Contemporâneos pela Universidade de
Coimbra. Investigador colaborador do Centro de Estudos Interdisciplinares do
Século XX da Universidade de Coimbra (CEIS20). Autor dos livros O sol bailou ao
meio-dia. A criação de Fátima (2015), Tomás da Fonseca. Missionário do povo
(2016), Fátima. A (des)construção do mito (2017).

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