sexta-feira, 28 de junho de 2019

As Parvas

Os mornais nas eiras

JOSÉ VERISSÍMO
Das várias fazes que completam o ciclo do pão, atendendo ao ambiente comunitário e de festa que as caraterizava, as parvas são ex-libris. A azáfama era grande, carros de bestas entravam e saíam das eiras, quais formigas no carreiro, na acarreija[1] do trigo ou centeio das cernelhas[2] que povoavam as terras. O chiar dos carros impunha a sua melodia ronceira nos campos e ao fim de algumas manhãs no caminho do carril pareciam os grazes[3] em hora de ponta. Durante o mês de julho uma outra aldeia edificava-se nas eiras que ganhavam vida vestidas de mornais[4] separados por um labirinto de ruelas estreitinhas e onde nós corríamos jogando ao esconde-esconde. Próximos das eiras, os palheiros eram o prolongamento da aldeia. Dispostos das barrancas até ao cemitério e ao barrocal , destinavam-se, primordialmente, ao armazenamento da palha do trigo e do centeio para garantir cama e complemento no sustento dos animais durante o ano. 
O mês de Agosto era, por excelência, o mês dos palheiros e das eiras. O âmago da aldeia centrava-se aqui e o comunitarismo atingia o seu auge. A época das parvas. Era chegada a vez dos vorazes monstros mecânicos, as malhadeiras que se encarregavam de triturar poisadas[5] e poisadas de trigo e centeio separando o grão da palha, numa imensa parva[6]. Estas impuseram-se ao trilho na década de sessenta do século passado e que por vezes ainda era usado para bater palha de centeio e fazer os colmos que posteriormente, depois de humedecidos, seriam usados para fazer bençalhos para atar o trigo ou centeio da próxima segada[7] ou as vides depois da poda das vinhas, para encher os xargões das camas, arranjar albardas e fazer enxergas para as bestas ou para os fachoqueiros que eram utilizados na matança para chamuscar o porco.
Para dar vazão à voracidade da máquina, era necessária muita gente, daí o recurso à mútua ajuda. Desde os mais velhos aos mais novos, homens e mulheres. Calcando a palha com espalhadoiras de pau nos palheiros, ou estendendo toldes para aparar a palha atrás da malhadeira, abondando molhos, transportando à cabeça toldes de palha para os palheiros ou ficar aos sacos, todos tinham uma tarefa. O calor era muito e o suor, a moinha e as arganas irritavam os olhos, o corpo e o nariz; porém, as refeições que se comiam nas eiras ou a proximidade de uma namorada, sobrepunham-se a tudo isso. Eram manjares dignos dos Deuses. Fico com água na boca quando recordo as sopas da segada, feitas pela minha madrinha e que fazia questão que constassem na ementa do desinjum, ou o bacalhau frito com cebolada, o frango frito, o queijo, a pescada passada por ovos, o salpicão, a salada de tomate... E o vinho bebido daquelas botalhas ou “cantando o Gregório” e bebendo do esguicho da bota!
Terminada a debulha chegava o carro das bestas para o transporte do cereal para casa depois de devidamente pesado e ser retirada a maquia que iria pagar o desempenho da máquina. Durante a operação de carga do carro costumava haver desafios de medição de forças: ver qual era o que conseguia colocar o saco mais pesado nas costas sem ajuda, levantá-lo do chão com os dentes... Chegados a casa, parte do cereal (para consumo e o da próxima sementeira) ia diretamente para a tulha, o restante ficava nos sacos para posteriormente ser vendido ao celeiro. Os termos, murnal, parva e eira são os mesmos que se usam em Aldeadávila e Mieza, povoações espanholas próximas de Lagoaça, que registam algumas terminologias comuns, como também um bairro de baixo, um bairro de cima… Destas e outras coincidências podemos concluir que muito é o que nos une naquilo que nos separa.




[1]Transporte do trigo das terras para as eiras.
[2]Construções paralelepipédicas feitas com os molhos de cereal nas terras onde aguardavam a acarreja.
[3]Gorazes: Realiza-se a 16 de outubro de cada ano, em Mogadouro, é tida como a melhor feira da região e identificada por este nome.
[4]Construção cilíndrica que terminava em cone feita com molhos de cereal nas eiras.
[5]Unidade de medida que correspondia a quatro molhos de trigo, centeio ou cevada e a um alqueire de grão.
[6]Ato da debulha.
[7] ceifa.

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