| António Magalhães |
A escola primária tinha sido de facto
uma experiência marcante, pesada, e a maior parte das vezes atemorizadora.
Na ainda curta existência como ser
humano, não era esta a melhor maneira de iniciar a minha educação escolar,
habituado que estava aos cuidados da minha mãe, e aos mimos da tia Ana, que
fora quem praticamente me criara.
Mas passado o tormento, passada a
tirania de um professor da qual a minha memória de criança, embora não
esquecendo, porque apesar de tudo era um idiota, arrumou a um canto do meu
cérebro, comecei a crescer, a viver novas experiências, a descobrir novas
emoções e sensações, algumas das quais por serem novas, eu não estava preparado
para elas. Mas, tudo isso era parte do processo de aprendizagem de crescer.
É certo que os bilhetinhos continuavam a
ser rasgados às últimas folhas do caderno, com frases por vezes
absurdas…absurdas o tanas. Nessa altura eram mais do que justificáveis, faziam
mais do que sentido. Pelo menos expressavam exatamente os sentimentos tal e
qual como eles eram. Não havia a pretensão de tentar soar muito inteligente, de
dizer mais do que o coração quer dizer porque dizendo apenas o que sente,
verdadeiramente, mais do que isso não é preciso. Só estraga. É claro que esses mesmos bilhetinhos
continuavam a ter desenhado o coração e a seta do cupido do amor e da paixão a
trespassá-lo, mas agora retirava-se o intermediário, aquele que servia de pombo
correio, e a diferença, e que pequena grande diferença não era, que o
bilhetinho fosse entregue pelo apaixonado, sim o próprio, em carne e osso,
carne essa que encrespava no ato da entrega, que se tornava vermelha, uma boa
parte por vergonha, uma boa parte por excitação, pela coragem de combater essa
vergonha, e se a coisa corresse bem, se a resposta fosse positiva, então lá se
abraçava a fêmea e com ela se atentavam as primeiras trocas de saliva, tendo
por mania de quem já é crescido e sabe o que faz, chamar a isso, beijar.
Quando me detenho a pensar nesses
saudosos tempos da adolescência, apesar dos cerca de quarenta e alguns anos por
eles já passados, fico sempre com a estranha sensação de que… parece que foi
ontem, e que de ontem até hoje, fica a distância de uma noite mal dormida,
daquelas noites em que um turbilhão de sonhos, quase todos seguidos uns aos
outros, confusos, baralhados, sem qualquer sentido, fazem com que a noite nos
pareça mais longa do que o habitual. E é
com esta sensação que fico ao pensar no espaço entre esses tempos e os de hoje.
Uma noite mal dormida que apesar de parecer mais longa do que é habitual, não
deixa de ser uma noite. E, no entanto, durante este espaço de tempo que parece
sempre tão curto, tanta coisa aconteceu, tantas vezes o mundo girou, tanta água
correu por baixo da ponte, tanta gente morreu e tanta nasceu, e mesmo assim o
tempo passou a correr. A vida é uma passagem muito curta. Morrem os homens
ficam as árvores, já alguém o dizia. A vida é um mistério por desvendar. Nunca
ninguém saberá verdadeiramente o seu significado, e, no entanto, nunca
aproveitamos o presente com a intensidade que devíamos. Mesmo assim ainda são
esses tempos da adolescência os melhores que a memória vai guardando.
Os jogos de futebol, as brincadeiras
depois das aulas, e mesmo durante, os namoricos, esses inefáveis momentos da
nossa vida em que despertam novas sensações, sentimentos que eram até aí
desconhecidos, momentos fortemente guardados na memória que não se apagam.
Não se esquece o primeiro beijo, um dos momentos mágicos do despoletar da
adolescência, bem como os abraços, os toques suaves e atrevidos que se iam
atentando, sem saber a maior parte das vezes o que esperar, se um estalo pelo
abuso, se um outro beijo pela ousadia.
Era bastante frequente nessa altura
ouvir dizer, “andas a sair da casca do ovo”, e a expressão ilustrava e de que
maneira todas as mudanças, incluindo as de atitude, que se começavam a
manifestar, até mesmo a voz que ia começando a tornar-se mais nítida, talvez
até um pouco mais rude.
Apesar da autoridade de verdugo, que o
professor do fato preto chapéu preto e de abas largas, impunha, já sabemos que
uma coisa daí se tirou como resultado, a de que eu era um bom e desembaraçado
leitor de textos.
Foi a partir do ciclo preparatório que
comecei a ganhar a paixão pelos livros, tornando-me aos poucos num leitor
assíduo e fervoroso, principalmente de autores Portugueses. À noite, perdoando
o exagero da expressão, tinha por companhia ao deitar da cama livros que
devorava, livros que tinham a particularidade de através da imaginação que
deles bebia, me arrancarem do lugar onde estivesse para me transportarem para
dentro da história e quase dela também participar. Lembro-me com agrado de
autores como Branquinho da Fonseca, Soeiro Pereira Gomes, Miguel Torga, entre
outros mais clássicos, como Camilo Castelo Branco ou Júlio Dinis, e mais tarde
o meu escritor favorito, José Saramago.
Mas o que me trouxe para a leitura, a
verdadeira razão pela qual por ela me apaixonei, quase como um vício que não
podia controlar, foram uns livros de aventuras de um tal Guilherme, que não era
o mesmo Guilherme que a serie Britânica da BBC imortalizou, com o lendário
William Tell, em Português vá-se lá saber o porquê, traduzido como Guilherme
Tell. Não, este Guilherme era bem mais caseiro, muito nosso.
Recordo alguns dos títulos, como por
exemplo, “Guilherme o bombeiro” ou “Guilherme vai à escola”. De uma maneira
para a qual não encontro explicação, mais não lembro acerca desses livros a não
ser esses dois títulos, que em jeito de confissão, admito até que não tenham nada
haver com a realidade, e o facto de ter a certeza do quanto eu adorava ler as
aventuras de Guilherme, a influência que esses livros que a maldita e
traiçoeira memória não me deixa lembrar mais do que a forte sensação de prazer
de leitura, de gosto genuíno em ler, é agora, passados tantos anos e tantas
atribulações, uma espécie de traço, apesar de tudo forte, que não deixa que a memória apague
totalmente. Lembro, no entanto, fragmentos de pequenas passagens, como aquela
em que a tia de Guilherme faz uma visita a sua casa, tia essa que usava um
perfume bastante estranho, e que o fizera gritar…” gás, gás, a minha garrafa
antigás?
Estes livros das aventuras de Guilherme
vieram de Lisboa, da casa do tio Manuel. Foi precisamente o tio Manel que antes
de acompanhar a minha mãe, sua irmã, à
estacão das camionetas com destino ao norte, empacotara numa caixa de papelão,
alguns livros, entre os quais “ As aventuras de Guilherme”, dois livros de
Júlio Verne, “Viagem ao centro da terra” e” Keraban o cabeçudo”, Três de Ágata
Christie, de quem mais tarde eu viria a ser um grande admirador das suas obras,
Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle, e “Polly em Veneza”, de Cécile Aubry, e um
velho gira-discos, que chamando-lhe assim não se lhe faz justiça uma vez que
tinha mais de antigo do que de velho, e que funcionava na perfeição, uma boa
meia dúzia de singles, em vinil claro, desde Beatles, Sandie Shaw, Frank
Sinatra, Badaró, e um tal Teixeirinha, gaúcho de gema, que apesar de não ser o
meu tipo de música, era inegável a voz formidável do cantor no seu estilo
musical. Foi também nesse gira discos que mais tarde, não tão tarde assim,
começaria a ouvir e a disfrutar daquela que viria a ser a minha banda preferida
de todos os tempos, incluindo os tempos de hoje, os Pink Floyd.
Sem talvez disso se aperceber, o Tio
Manel empacotava também naquela caixa de papelão, o meu gosto e paixão pela
leitura e pela música, que logo começou a desabrochar em mim, assim que parte
do conteúdo veio parar às minhas mãos.
Mais do que a brincadeira com os amigos,
era a leitura que me prendia as atenções, pois vivia momentos fascinantes a
cada página virada, a cada capítulo concluído, e assim que terminava um livro
já estava a pensar no próximo, saltando da ficção policial, para o romance, do
romance para a ficção cientifica, com especial destaque para a ovnilogia e
buracos negros no universo, e até mesmo livros de política, a destacar a biografia de Lenine, “ A Sagrada Família”
de Karl Marx e Friedrich Engels, alguns livros de Álvaro Cunhal, e o “Tarrafal”.
A passagem de ano, ou seja, do primeiro
ano do ciclo preparatório para o segundo, foi feita sem dificuldades, muito
embora não fosse nem por sombras o melhor aluno da turma. A quase necessidade
que eu tinha em me destacar em relação aos meus colegas de turma, bem como de
igual modo a todo o resto da malta do ensino preparatório, ocupavam em grande
medida as atenções que deveria dedicar aos estudos, arranjando sempre formas de
edificar uma reputação que de certa maneira, no meu entender, fosse definindo o
tipo de pessoa que exercia sob os que me rodeavam, uma influência, que apesar
de tudo não era de modo algum negativa, mas sim populista. A vida parecia
correr sob rodas, sem razões para queixumes ou lamentações, e que mais se
poderia pedir dessa mesma vida, para um miúdo que apesar de tudo, jogava bem à
bola, não tão bem e com tanta habilidade como o tal Luís, mas, assim gostava de
pensar, era um bom jogador de futebol, vital e indispensável para a equipa, cativava e mantinha bons
amigos, fluía com certa popularidade entre as miúdas da turma, e gostava de
pensar que com a mesma destreza com que arranjava uma namorada, também a
deixava ficar sem que isso afetasse de maneira alguma a minha normal
funcionalidade como ser humano, ou atingisse a moral de qualquer forma
negativa, tirando poder ao à-vontade com que sempre me apresentava perante toda
a turma. A reputação preserva-se com determinação e sem fraquezas.
(excerto do capítulo 3 da autobiografia-
não publicado)

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