“Nunca passei fome. Os
meus filhos nunca passaram fome. Os meus netos nunca passaram fome. Mas, em
Portugal, ainda há gente que sofre por não ter de comer.”
Assim começa o livro
“Os pobres” de Maria Filomena Mónica. E a partir daqui, a autora retrata o
Portugal pobre que conheceu desde os 16 anos, quando visitou um bairro da lata,
e apontou notas no seu diário pessoal.
Maria Filomena Mónica
escreve sobre o pós 25 de Abril, o caso extremo da freguesia de Rabo de Peixe,
em São Miguel (Açores), e de como a ajuda aos mais necessitados nem sempre
surge, quando existe, de onde se esperaria.
Segue um pequeno excerto:
“A percepção da
pobreza como uma inevitabilidade mudou com a passagem do tempo. É verdade que
ainda hoje se podem observar, nalguns espíritos mais reaccionários, restos da
antiga ideologia, mas já ninguém é capaz de afirmar que os pobres são preguiçosos,
ladrões e bêbados e que, portanto, merecem o seu destino. Alguns criticarão o
Estado Social e as suas «dádivas», como o RSI (Rendimento Social de Inserção),
mas terão vergonha de defender em público uma maior dureza no tratamento dos
pobres. Mais uma vez, importa lembrar que, ao falarmos de pobres, não estamos
só a pensar em desempregados ou nos sem-abrigo, mas em trabalhadores que ganham
tão pouco que não são capazes de alimentar decentemente as famílias.
Os dados apresentados
pelo INE (Instituto Nacional de Estatística) revelam que, durante o período em
que a troika esteve em Portugal (2011-2014), a proporção de trabalhadores
pobres aumentou: o fenómeno, que em 2011, atingia 9,9% dos trabalhadores,
subiu, em 2014, para 11%. Note-se que os trabalhadores portugueses recebem, em
média, 10,4 euros por hora, um quantitativo inferior ao da Espanha e da Grécia
e longe, claro, dos 35 euros pagos na Dinamarca. Portugal está quase no fim da
tabela (o país que ocupa esse lugar é a Bulgária), sendo a média europeia de
18,5 euros.
Usando como base os
dados do inquérito ao emprego é possível chegar, de forma aproximada, a números
absolutos. Em 2011, segundo os critérios oficiais, existiriam em Portugal 469
mil trabalhadores pobres; em 2014, seriam 495 mil. Há pior: considerando os
países da OCDE, Portugal é dos mais desiguais na distribuição dos rendimentos.
Segundo dados provisórios do INE, em 2015, o peso dos salários brutos no PIB
era de 33%, o valor mais baixo dos últimos 55 anos. Entre 1960 e 1974, andara
na casa dos quarenta e tal por cento: em 1960 era de 44,8% e, em 1974, de
47,7%. Após a revolução esta percentagem subiu extraordinariamente: em 1975
para 59, 3%, sendo, em 1976, de 57,8%. Previsivelmente, em 1977, começou a
baixar, mantendo-se depois nos 40%”.
[…]
“Em 1988, numas férias
passadas em São Miguel, nos Açores, uma colega, a Fátima Sequeira Dias,
levou-me a Rabo de Peixe, uma freguesia miserável situada na costa norte da
ilha. Tão fascinada andava eu com tudo o que vira até então que ela terá
querido mostrar-me a outra face da medalha. Infelizmente, nesse dia, deixara o
meu caderninho de notas no hotel, pelo que, passados tantos anos, de pouco me
lembro. E do que me lembro, nem tudo é rigoroso, embora algumas coisas – os
rapazitos meio nus, as casas minúsculas, os velhos arrastando-se pelas vielas –
ainda surjam claramente na minha memória, enquanto outras, como os montes de
algas a atapetar as ruas, possam ser fruto da minha imaginação.
Seja como for, voltei a ouvir falar de Rabo de Peixe, no programa «Perdidos e Achados» da SIC. Em 1996, este canal de televisão fez uma reportagem, que seria repetida doze anos depois, na qual o jornalista Estêvão Gago da Câmara entrevistava vários residentes. O documentário começava com imagens de um grupo de miúdos a construir um pequeno barco com restos de madeira e lata martelada. Quando o jornalista lhes pergunta o que iriam fazer na vida, o mais ladino respondeu: «Vou ser pescador», seguido por outros que igualmente confirmaram ser essa a profissão que desejavam. Porque pescadores eram os seus pais e avós e pescadores haviam sido os seus antepassados. Em seguida, a reportagem mostra-nos o barquito já a navegar no Atlântico, comentando um dos miúdos: «Somos todos pescadores». Nenhum deles gostava da escola, confessando que a tinham deixado não só porque ela os aborrecia mas ainda porque queriam ganhar dinheiro a fim de matar a fome dos seus. Para eles, o mundo reduzia-se a Rabo de Peixe e o trabalho à pesca. Tão fechados eram os seus horizontes que estranho seria que tivessem outras ambições. A única realidade que conheciam era aquela: pescadores seriam.
No duro Inverno de
1996, o desespero desta gente foi tal que decidiram organizar uma manifestação
em Ponta Delgada, durante a qual atiraram chicharros para cima dos símbolos do
poder regional.
Vários dos
entrevistados – a maioria mulheres – falaram da dureza das suas vidas. Uma
delas, com 63 anos, confessou que, por vezes, fugia dos netos porque estes lhe
vinham pedir de comer: «Isto é uma tristeza, senhor. Esses pequenos não tiveram
culpa que Nosso Senhor [os tenha mandado] ao mundo. Querem comer e não têm. Vão
para os pais e as mães: “Ai, minha mãe, quero pão de trigo.” E eu digo ao
senhor, pelo Pai Eterno do Céu, às vezes, nem tenho pão de trigo duro para dar aos
pequenos». Outra, com 75 anos, disse ter 50 e tal netos e 27 bisnetos. De
facto, uma das características de Rabo de Peixe reside na sua altíssima taxa de
natalidade. Grande parte da população é jovem: em 2000, mais de um terço tinha
menos de 14 anos.
No duro Inverno de
1996, o desespero desta gente foi tal que decidiram organizar uma manifestação
em Ponta Delgada, durante a qual atiraram chicharros para cima dos símbolos do
poder regional. Entre outros apoios, reivindicavam um «Fundo de Garantia de Salários»
para quando não pudessem ir à pesca. Verificaram-se algumas melhorias: o porto
passou a ter um quebra-mar e construíram-se casas para quem ali morava. Mas a
pobreza continuou. De entre as várias freguesias açorianas, Rabo de Peixe é
ainda hoje aquela onde mais gente – um quarto da população – é beneficiária do
RSI”.
[…]
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