26/11/2018
O cumprimento da pena de 5 anos aplicada
a Armando Vara será um pequeno passo para sedimentar a ideia de que quem
prevarica e viola a lei, é castigado pela Justiça. Faltam outros passos.
1. A ideia de Justiça é algo subjacente
à existência da Democracia. Uma justiça em que as garantias de defesa e de um
processo justo são asseguradas pela lei, uma justiça independente do poder
político e uma justiça célere em que todos sejam tratados de igual forma —
todos estes conceitos só são colocados em prática, se existir uma verdadeira
democracia. Mas há uma ideia mais simples que é igualmente fundamental: a de
quem prevarica e viola a lei, é castigado.
Em Portugal, esta última ideia (básica)
está em crise desde há muito. Raramente foi aplicada durante a Ditadura — e
continua a não ser uma regra óbvia em Democracia. O que corrói de forma
agressiva e persistente a confiança dos eleitores no regime e coloca em causa o
próprio conceito de Democracia.
A inevitabilidade da prisão de
Armando Vara (assim como de outros arguidos do processo Face Oculta) é
uma notícia que ajuda a acalentar a esperança de
que a luta contra a corrupção e restante criminalidade económico-financeira
está surtir os seus efeitos. Mas essa é uma esperança que, apesar não ser vã,
ainda não é suficientemente forte para termos a certeza de que estes resultados
são persistentes, duradouros e estruturais.
Senão, vejamos:
- Os atrasos. A pena de prisão de Armando Vara (e dos
restantes arguidos condenados a prisão efetiva) chega quase nove anos após
o início da investigação, quatro anos após condenação em primeira instância
e um ano e meio após a decisão da segunda instância. O único prazo que é
de elogiar, face à criminalidade complexa que estava sob investigação, é o
do inquérito do DIAP de Aveiro: inferior a 2 anos. Já as fases mais
demoradas foram as do julgamento e do recurso para a Relação do Porto:
entre 2 anos e 7 meses a três anos. Estes tempos processuais são
claramente incompatíveis com uma justiça célere e eficiente.
- Os expedientes dilatórios. Não há volta a dar: qualquer
processo com arguidos com poder financeiro para pagar a um dos melhores
advogados do país e as respetivas taxas de justiça, terá sempre uma litigância que
faz abrandar o ritmo da Justiça. Quantos mais arguidos, pior. Só no Face
Oculta são 34 arguidos. Entre o número ilimitado de testemunhas para o
julgamento, recursos propriamente ditos, os incidentes de recusa de juiz
ou de procurador, as nulidades, as reclamações e as revisões de acórdãos,
por exemplo, há uma série de instrumentos disponíveis. Contudo, a
desigualdade no acesso aos mesmos é evidente.
- E o golpe de estado judiciário. O processo Face Oculta já
ficou para a história judiciária portuguesa como o processo em que o então
procurador-geral Pinto Monteiro e o conselheiro Noronha de Nascimento,
então presidente do Supremo Tribunal de Justiça, impediram o Ministério
Público de investigar José Sócrates por ter tentado controlar
ilegitimamente a comunicação social. Foi um autêntico golpe
judiciário que nunca foi esclarecido.
2. São precisamente razões como estas
(atrasos, manobras dilatórias e influência política) que fazem com a Opinião
Pública perca confiança não só numa Justiça igual para todos com também numa
ideia de meritocracia para a sociedade.
A questão que se coloca é simples:
atendendo ao poder financeiro de muitos arguidos poderosos que lhes permite ter
os melhores advogados, será uma inevitabilidade que qualquer processo que os
envolva demore quase a 10 anos a ser resolvido definitivamente?
Quer a demora no julgamento, quer a
demora na decisão dos recursos, são possíveis de combater através de novas
alterações legais:
- Limitar o número de testemunhas e o tipo de
produção de provas que é feito em julgamento;
- Reduzindo ou eliminando os expedientes dilatórios que
os advogados costumam usar para impedir o normal curso do processo penal;
- Alargar e definir o conceito de litigância de
má-fé para permitir aos juízes agirem nesta última matéria.
Propostas precisas e concretas que
tornariam o processo penal mais ágil. O mesmo se pode dizer sobre a possível a
eliminação da fase de instrução criminal — uma fase que se assemelha a um
pré-julgamento que antecipa praticamente todas as diligências que as
defesas vão repetir em julgamento.
3. Nenhuma destas medidas estão a ser
ponderadas pelo Executivo de António Costa, pela simples razão de que hoje
vivemos um tempo de silêncio do Governo sobre a luta contra a corrupção. Não há
uma estratégia nacional contra a corrupção, como não há investimento no Ministério Público
e na Polícia Judiciária para proceder a essa luta.
Uma omissão do Executivo que é tanto
mais estranha quando o Ministério Público acusou há um ano José Sócrates de
três crimes de corrupção passiva, 16 de branqueamento de capitais, nove de
falsificação documento e três de fraude fiscal.
A ideia de que não há um problema de
corrupção sério no sistema político português quando um ex-primeiro-ministro
é acusado de ter planeado um esquema de
corrupção desde o primeiro dia em que entrou em São Bento é tão extraordinária
como pensar que os problemas económicos do país são resolvidos com um défice
zero — e as espetaculares cativações que permitem atingir esse resultado.
Obviamente que António Costa sabe desde
2014 que, quando se fala de corrupção, estamos a falar da Operação Marquês.
Falar do Marquês é falar de José Sócrates — e falar de Sócrates é falar do PS e
da total ausência de auto-crítica dos socialistas face ao que está escrito
explicitamente e implicitamente na Operação Marquês: o PS foi cúmplice na forma
como José Sócrates tentou construir um poder absoluto unipessoal.
António Costa teve um comportamento
exemplar (apesar dos óbvios ganhos políticos com os problemas judiciais de um
possível rival interno), quando não deixou que Sócrates utilizasse a pressão do
PS sobre a Justiça para resolver o seu problema criminal. Mas isso não chega. É
preciso que reconhecer que existe um problema (a corrupção) e encontrar
soluções para o mesmo.
A solução de desresponsabilização e fuga
dos problemas que Costa costuma encontrar para todos os problemas do Governo e
do PS, como aconteceu uma vez mais no caso da tragédia de Borba, não é opção
aqui.
4. Dizia-me há uns meses um
conhecido advogado do Porto que a Justiça portuguesa está hoje ao nível da do
Burquina Faso. E porquê? Devido ao “espetáculo mediático” que costuma
rodear qualquer processo judicial relevante, o que coloca em causa os direitos
dos arguidos. Para este causídico, como para muitos outros, o processo penal
quase que devia ser privado — dispensando-se assim a presença e o escrutínio
dos media.
Reconhecendo que existem (regularmente)
exageros por parte da comunicação social, não é menos verdade que, apesar de
tudo, Armando Vara vai cumprir uma pena de cinco anos de prisão efetiva
pela prática de três crimes de tráfico de influência — e outros arguidos como
José Penedos (ex-presidente da REN) e o sucateiro Manuel Godinho lhe seguirão
os passos.
Será um pequeno passo para sedimentar a
ideia de que quem prevarica e viola a lei, é castigado pela Justiça. Faltam
outros passos — e outros processos. Que terão o acompanhamento devido (e
obrigatório) da mesma comunicação social livre e independente que nunca deixou
de informar a Opinião Pública sobre o processo Face Oculta. Tal como
provavelmente acontece no Burquina Faso, segundo as mentes cosmopolitas de
alguns dos nossos juristas.
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