A que propósito os portugueses se envergonhariam do
prof. Marcelo se se podem envergonhar do sr. Trump e do sr. Bolsonaro? A que
propósito lamentariam os mortos do SNS se há inúmeros sobreviventes?
2h15 – Após verificar que os protestos dos coletes
amarelos deixaram o governo atento, a GNR atenta, a PSP atenta e a Força Aérea
atenta, decido permanecer também atento e acompanhar em pormenor o dia do
anunciado Apocalipse. Garanto a mim mesmo que ao longo de 24 horas não pregarei
olho, a vigiar a partir do computador o caos que ameaça o meu querido país.
2h25 – Adormeço.
5h20 – Acordo e faço café.
5h30 – Acedo ao manifesto dos coletes amarelos.
Infelizmente, a internet destruiu-nos a capacidade de concentração e, logo ao
fim de dois parágrafos, dou por mim a desistir da leitura para comprar sapatos
num site de vendas. Vale que não preciso de ler o manifesto para compreender no
que consiste o movimento. Aos poucos, e sempre entre sites de sapatos, relógios
e peúgas desportivas, vou espreitando o que inúmeras pessoas esclarecidas
disseram acerca dos prometidos tumultos.
O sr. Arménio da CGTP, por exemplo, uma personalidade inegavelmente equilibrada, revela que a coisa não passa de um bando de arruaceiros que “querem instabilidade para dar força à extrema-direita”. Ai, os marotos. Deve a isto que o dr. Ferro Rodrigues, sujeito impecavelmente asseado, chama o “mau cheiro populista que sopra da Europa”. Ainda que figurativo, o fedor incomoda-me. Volto a adormecer.
O sr. Arménio da CGTP, por exemplo, uma personalidade inegavelmente equilibrada, revela que a coisa não passa de um bando de arruaceiros que “querem instabilidade para dar força à extrema-direita”. Ai, os marotos. Deve a isto que o dr. Ferro Rodrigues, sujeito impecavelmente asseado, chama o “mau cheiro populista que sopra da Europa”. Ainda que figurativo, o fedor incomoda-me. Volto a adormecer.
7h00 – A hora marcada para o início do tsunami
amarelo. Continuo a dormir.
12h15 – Acordo às 12h15. Vejo que são 12h15 e entro em
pânico: decerto a vaga de extrema-direita já levou tudo à frente e as
comunicações caíram. As comunicações não caíram. No Facebook, circula uma
fotografia, tirada não sei onde, em que duas dúzias de coletes amarelos se vêem
rodeados por uns cinquenta polícias (se descobrisse as armas de Tancos, o
Exército não faltaria). Achei o policiamento escasso e preocupante: a fúria
fascista exige, no mínimo, uma proporção de 5 para 1 e, idealmente, 5 para 0.
Num desses programas de “debate” em que, graças a Deus, todos concordam, um
comentador isento e avençado do regime pedira “acção directa”, leia-se bordoada
na ralé.
12h35 – Ligo o televisor, que não acolhe canais
“tradicionais” há meses. A RTP faz um “directo” dos protestos. Por acaso, são
na Catalunha. A TVI 24 mostra os manifestantes no Marquês de Lisboa. Gritam “O
povo unido jamais será vencido”, ou seja, a extrema-direita recorre a slogans
dos comunistas chilenos, blasfémia que prova a ignorância cega dessa gente. A
repórter fala em “tensão” e “confusão”. Há notícias de três detidos.
Aparentemente, não sobraram muitos mais.
13h00 – Leio algures que velhos organizadores de
rebeliões boas (“buzinão”, “geração à rasca”) abominam a “falta de politização”
dos coletes amarelos (rebelião má), que não traduzem uma agitação “orgânica” e
desejam abolir os partidos, os partidos que, coitados, tanto se esforçam pelo
bem comum e por alguns bens incomuns. A extrema-direita, sete ou oito biltres,
tem imensa lata. Na CMTV, uma jovem manifestante critica “a porcaria que tomou
conta do país”. No sofá, peço retoricamente à sirigaita que dobre a língua
quando se referir a uma nação que já ocupa o 16º posto no PIB per capita da
zona euro e, não esquecer, é a 21º economia com maior crescimento na UE. E isto
antes de as forças progressistas que nos governam acabarem de enxotar o que
resta do investimento estrangeiro e imperialista.
13h28 – Em Faro, 20 ou 30 insurrectos (os demais,
informa o repórter, foram almoçar) vagueiam numa rotunda. Erguem cartazes
contra a corrupção. Corrupção? O prof. Freitas, personalidade inapelavelmente
digna, veio há dias assegurar a honestidade do ex-banqueiro Salgado. E o dr.
Pinho aparece agora na TVI a assegurar a inocência do dr. Pinho nos “casos”
(fictícios) EDP e BES. Corrupção? Só se
for a das “toupeiras” do Benfica ou não sei quê, assunto que, na prioridade dos
canais, sucede à devastação populista que assola Portugal.
13h30 – O primeiro-ministro deseja que os protestos
continuem a correr com “tranquilidade”. O dr. Costa padece de excessiva
tolerância. Em paragens completamente democráticas, como em Cuba, na Coreia do
Norte, na Venezuela e na saudosa comuna de Jonestown, não há resmungos: há a
gratidão dos súbditos perante líderes virtuosos. Apesar de a maioria dos
portugueses ser grata, e proceder com respeito e juizinho, pairam por aí
“criminosos e infractores” (palavras da radiosa ministra da Saúde) que se
queixam de barriga cheia, desafiam o poder e fomentam desavenças. As cadeias
servem para quê, afinal? Imito (cruz, credo) os coletes amarelos e parto para
almoço, com oração prévia a louvar os senhores que nos tutelam.
15h00 – Regresso à vigilância. Nas televisões há
azáfama e excitação. Assusto-me, convencido de que a extrema-direita adoptou a
luta armada e desatou a rebentar com propriedade sortida. Imagino helicópteros
do INEM a cuidarem do resgate de inocentes, certos de que cada despenhamento abrirá
concursos de apuramento da verdade, custe o que custar. À cautela, consulto
preços de voos para Caracas (1.026€). Não concluo a transação porque descubro a
tempo que o rebuliço televisivo se prende com o Benfica, prestes a perceber se
é, ou não é, corrupto. Respiro de alívio.
16h23 – Noto que, a bem da estabilidade, os coletes
amarelos sumiram da actualidade noticiosa, com excepção do vídeo em que um PSP
despe o colete (de cor distinta) para insultar e oferecer porrada a uns idosos
extremistas. Aquele coração mole não os abateu ali, e foi pena.
17h10 – Volto às televisões e aprendo que, à
semelhança do dr. Salgado, do dr. Pinho e outros enormes vultos, o Benfica é
igualmente inocente. Ao que tudo indica, a extrema-direita bateu em retirada de
vez (numa carrinha de nove lugares).
17h15 – Sem querer comentar os coletes amarelos, Sua
Excelência, o Presidente da República comenta os coletes amarelos: “Os
portugueses não trocam a segurança da democracia pelo aventureirismo de
experiências marginais e anti-sistémicas”. Pois não. A que propósito os
portugueses trocariam? A que propósito os portugueses reclamariam das estradas
que se esfarelam se têm estradas que continuam inteiras? A que propósito os
portugueses lamentariam os mortos do SNS se há inúmeros sobreviventes? A que
propósito os portugueses arrasariam à paulada a Protecção Civil que não auxilia
nos desastres se esta nos aconselha a vestir agasalhos no Inverno? A que
propósito os portugueses chorariam o dinheiro que o Estado lhes tira se podem
celebrar o dinheiro que o Estado lhes permite reter? A que propósito os
portugueses se envergonhariam do prof. Marcelo se se podem envergonhar do sr.
Trump e do sr. Bolsonaro? A que propósito os portugueses protestariam uma
situação que é a cara chapada deles próprios? Quanto à liberdade, os
portugueses são livres – de obedecer. E quase todos obedecem com gosto a quem
os protege do mundo, incluindo das hordas de extrema-direita. O fascismo não
passará. Aqui, aliás, não passa nada.
21h10 – Cruzo-me na estrada com um ajuntamento de
coletes amarelos. Sinto um nó na garganta. Depressa constato tratar-se de um
acidente rodoviário. Fico contente.
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