Há quem nos repita o
mantra de que a escravatura em África era suave, quando comparada com a que foi
criada pelos europeus nas Américas.
Num muito bom artigo
sobre tráficos de escravos, publicado na recente Visão História, o historiador
Arlindo Manuel Caldeira lembra-nos que a escravidão “estava disseminada em
todas, ou quase todas, as sociedades africanas antes da chegada dos europeus”,
e que não era necessariamente mais doce do que a que os ditos europeus
conheciam e viriam, depois, a desenvolver. A chamada de atenção para este ponto
é muito importante, porque ele é geralmente ignorado, escamoteado ou
distorcido. Por isso, talvez seja útil aprofundar um pouco mais o assunto e vou
começar a fazê-lo através de duas histórias verídicas.
A primeira é narrada
por Robert Harms em River of Wealth, River of Sorrow, um livro que estuda as
sociedades de pescadores da bacia do Zaire, entre os séculos XVI e XIX. Harms
fala-nos de um homem que, tendo sabido que a gente que vivia a montante, na
margem do rio, estava a passar muita fome, carregou alguns alimentos na sua
canoa e remou até lá. Com a comida que levava comprou dois rapazes e regressou
a casa. Quando esses rapazes — que ele teve o cuidado de alimentar bem — se
tornaram suficientemente fortes, o homem adquiriu uma espingarda para si, armou
os seus dois rapazes com lanças e subiu novamente o rio, na sua canoa. A visão
da espingarda e dos rapazes armados assustou e pôs em fuga as pacíficas pessoas
da aldeia ribeirinha. Ainda assim, o homem conseguiu capturar três jovens que
levou consigo, de volta a casa. Pô-los a construir cabanas e habitações, que
atraíram gente, e em breve dispunha de uma povoação. O seu nome passou, então,
a ser conhecido e respeitado. Por isso, quando pela terceira vez subiu o rio na
sua canoa, adquiriu facilmente mais escravos, e desse modo se tornou muito rico
e poderoso.
O episódio do homem da
canoa revela-nos a maneira comercial, digamos assim, de adquirir escravos em
África. Havia formas mais brutais como, por exemplo, a que Chisi, uma mulher de
Nanuanga (actual Tanzânia), viveu no final do século XIX. Ainda criança, Chisi
foi, com o irmão, a uma outra aldeia visitar uma irmã mais velha. Essa aldeia
foi atacada pelos Bemba, enquanto eles lá estavam. Todos os homens da aldeia
foram mortos e as suas cabeças cortadas para que pudessem ser exibidas ao chefe
dos atacantes. Chisi e a irmã foram capturadas e ficaram escravas dos Bemba.
Três anos depois, a menina foi vendida a mercadores muçulmanos que viviam perto
do mar. Tendo conseguido fugir, encontrou acolhimento e protecção junto de
Ndeye, um homem preto com o qual teve filhos. Ficou com esse homem e as suas
outras mulheres durante vários anos, mas era tão maltratada que acabou por
fugir outra vez. Fê-lo de coração dilacerado porque, para escapar ao seu
cativeiro, teve de abandonar os filhos pequenos. A história de Chisi é contada
por Marcia Wright em Strategies of Slaves and Women.
Há inúmeras histórias
como a de Chisi, e muito mais impressionantes ou arrepiantes do que a sua,
porque a escravatura em África era, ou melhor, podia ser, muito cruel. Basta
pensar que vários reinos africanos faziam sacrifícios humanos nos quais podiam
chegar a matar centenas de escravos e prisioneiros de guerra. Porquê? Para quê?
Por razões políticas, sobretudo. Como afirmava Kpengla, que foi rei do Daomé na
parte final do século XVIII, isso fazia com que o seu nome fosse conhecido e
com que os inimigos o temessem. Mais do que a exibição das coisas sumptuosas
que ia adquirindo, era a execução dos escravos que dava grandiosidade às suas
festas e à sua pessoa. Conhecemos bem esse tipo de festividades e os métodos de
executar os escravos graças às descrições feitas pelo tenente Frederick Edwyn
Forbes, da Royal Navy, que visitou o reino do Daomé em meados do século
XIX.
Eu sei que isto soa
estranho aos ouvidos dos primitivistas. O primitivismo, no sentido em que aqui
uso a palavra, é a convicção de que os mundos primitivos (chamemos-lhes assim
por comodidade) e pré-industriais eram harmónicos e felizes, até que a chegada
dos ocidentais os demoliu, desagregou e transformou para pior. Na esfera histórica
e cultural do Ocidente o primitivismo manifestou-se logo nos anos que se
seguiram à descoberta das Américas, pois houve uma marcada tendência de
viajantes e missionários para encararem esse Novo Mundo como algo próximo do
ideal da natureza, uma espécie de Jardim do Éden, onde os nativos pareciam
gozar a inocência e a felicidade de um tempo anterior à Queda. É verdade que
também houve quem discordasse deles e visse os índios como idólatras que
cometiam pecados contra a natureza, e a América como um universo negativo, uma
terra de canibalismo e de brutalidade. Mas a ideia primitivista resistiu,
atravessou os tempos, passou pelo Bom Selvagem de Rousseau, adquiriu
fortíssimas reverberações românticas e tornou-se muito popular entre as pessoas
politicamente correctas. Essas pessoas têm tendência para negar várias
evidências porque se banham numa cultura que tem sido adubada e regada por
séculos de ilusões primitivistas.
No que respeita à
história da escravatura, a principal evidência que se recusam a ver é a de que
os não-ocidentais, africanos ou asiáticos, foram, em muitos momentos,
gananciosos e cruéis. Na sua visão, ganância e crueldade seriam um exclusivo
dos brancos. Infelizmente, não foi nem é assim, e encontramo-las em profusão em
todos os continentes, ontem como hoje. Importa lembrar tudo isso aqui, porque
há quem nos repita constantemente o mantra de que a escravatura em África era
suave, quando comparada com a que foi criada e desenvolvida pelos europeus nas
Américas. Há mesmo quem classifique a escravatura intra-africana como
“doméstica”, deixando subentendido que seria familiar, moderada, quase
acolhedora. Ora, isso é falso, ou melhor, pode ser falso. A escravidão e o
tráfico de pessoas, em África, podiam ser ou não ser moderadas. Mas o mesmo
pode ser dito a respeito da escravidão e do tráfico nas colónias europeias nas
Américas. Também aí houve vários graus de dureza e de brutalidade a que os
escravos estiveram sujeitos. A situação do escravo que capitaneava um barco a
vapor no Mississípi e tinha, entre os seus subordinados, vários homens brancos
livres, pouco teria em comum com a do desgraçado (ou desgraçada) que andava
todo o dia a apanhar algodão num campo qualquer. O quotidiano dos escravos
favoritos da casa, ou da chamada elite escrava — cocheiros, carpinteiros,
escravas domésticas directamente ligadas aos senhores —, era muito diferente da
dos escravos rurais que penavam no corte da cana ou no fabrico do açúcar.
A escravatura existiu
em muitas partes do mundo e conheceu várias modalidades, que variaram consoante
a época, o local e os intervenientes. Independentemente das diferenças entre
elas, todas tinham traços em comum, o principal dos quais era a
vulnerabilidade. Era em primeiro lugar por isso que a escravatura era horrível.
E era-o tanto na América como em África ou noutra parte do mundo. O escravo
era, em qualquer tempo e local, um morto social e alguém que dependia única e
exclusivamente da boa ou má vontade do seu senhor ou senhora. Ou seja, era
absolutamente vulnerável, como um órfão ou um desvalido. Nem sequer a sua voz e
as suas palavras eram suas, como dizia acertadamente um ditado africano.
Tendo isso em mente, o
mais importante não é saber se a escravidão em África era mais ou menos brutal
e injusta do que a que foi praticada nas Américas, ou do que a que tiveram de
suportar as prostitutas escravas japonesas ou os negros que limpavam terrenos
agrícolas no sul do actual Iraque. Tudo isso, no fundo, são variações de um
mesmo mal. O que é verdadeiramente importante perceber e valorizar é que num
determinado momento da história se decidiu pôr fim à escravatura nas suas
muitas modalidades. O que é verdadeiramente central, importante e inédito — e,
isso sim, distingue o sistema escravista transatlântico de todos os outros — é
o fim da escravidão, uma reforma que ficamos a dever ao abolicionismo nascido e
desenvolvido no Ocidente, a partir de final do século XVIII, e que à custa de
muito esforço e de muita tenacidade, se foi impondo ao mundo.
Historiador e
romancista
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