Durante 24 anos o Estado
soube que uma estrada podia ruir. Nesses 8760 dias inspeccionou galheteiros,
criou registos nacionais para galinhas e montou um big brother fiscal. Só nunca
fechou a estrada.
“Não há evidências” de
responsabilidade do Estado” – declarou António Costa a propósito do desastre de
Borba. Ouve-se e não se acredita. Ou melhor não se quer acreditar. Porque se
acreditarmos teremos de admitir que o nosso Estado é inimputável e que António
Costa não só sabe disso como tira partido disso.
Mas esta frase não é apenas
mais um exemplo da retórica da impunidade praticada por um político que se
acredita acima de qualquer contestação enquanto for mantendo satisfeitos os
seus parceiros de Governo. Aquilo que está espelhado nesta afirmação é
sobretudo aquilo em que o Estado português se transformou: uma burocracia que
se tornou no fim de si mesma. Uma máquina em que ninguém assume
responsabilidades mas em que todos podem dizer que cumpriram com as suas
funções. Em resumo, uma estrutura em que os cidadãos não podem confiar.
Recapitulemos: desde 1994
que à administração pública chegava informação sobre a degradação rodoviária na
zona de extracção dos mármores de Borba-Vila Viçosa. Em 1998 já o Plano de
Urbanização de Borba previa a desactivação da EM 255. Em 2002, 2008 e 2015 o
Instituto Superior Técnico e a Universidade de Évora fizeram estudos e
produziram relatórios onde alertavam para a gravidade da situação. Estes
estudos foram dados a conhecer pelos menos à Direcção Regional da Economia do
Alentejo e à Câmara Municipal de Borba. Ninguém fez nada.
Contudo durante os 8760 dias
desses 24 anos em que a estrada que liga Borba a Vila Viçosa se ia desfazendo o
Estado português perseguiu colheres de pau e galheteiros. Atirou-se com fúria
reguladora às bolas de Berlim e ao pão com sal. Arvorando-se líder de um alegado
avanço civilizacional, o Estado passou a meter-se cada vez mais na vida das
empresas, determinando o sexo dos seus quadros, a linguagem que devem usar e
exigindo-lhes catequeses ideológicas sobre igualdade de género. Quis salvar o
planeta e logo concluiu que devemos usar papel e não plástico, bicicletas,
trotinetas e lâmpadas primeiro de baixo consumo, depois led e depois se verá. A
nível local as câmaras foram trocando a engenharia pela sociologia: fechar uma
estrada pode tirar votos. Pelo contrário, organizar festas e passeios só gera
boa imprensa.
Entretanto durante os 8760
dias desses 24 anos a informação sobre o que estava a acontecer na EM 255
circulava entre as secretárias de doutores, assessores, funcionários,
engenheiros, arquitectos, advogados… tudo certamente cheio de assinaturas e
rubricas. Envelopes, dossiers e folhas de rosto registavam as sucessivas étapas
dessa peregrinação pelos interiores da máquina estatal ela mesma sempre em
reestruturação. É um guião de filme de terror tentar seguir o rasto desta
informação entre a Direcção Regional da Economia do Alentejo, Instituto
Português de Qualidade, Direção-Geral de Energia e Geologia, Inspecção-Geral do
Ministério do Ambiente… porque obviamente se constata que entre a informação
que se perde mais os organismos que mudam de tutela, o que é urgente passa a
secundário, o que é importante logo se esquece. Ninguém é responsável por nada.
E todos fizeram o que estava certo.
Ao longo dos 8760 dias
desses 24 anos a voracidade por recursos levou esse mesmo Estado a níveis de
intrusão na nossa vida nunca conseguidos por quaisquer serviços de informações:
desde o formato das cadeiras das esplanadas ao número de porcos, cabras e ovelhas
que cada português pode afectar ao seu auto-consumo tudo está regulado, logo
taxado. Mede-se com rigor de centímetros o diâmetro dos vasos que os lojistas
colocam na porta das respectivas lojas, o número de jarras em cada campa dos
cemitérios e obrigam-se os proprietários das galinhas poedeiras a declararem
anualmente quantas galinhas possuem. Tudo está regulado, medido e avaliado em
função da recolha dos impostos, taxas e contribuições. A legalidade tornou-se
um conceito fiscal: paga-se a taxa e a situação por mais absurda que seja – por
exemplo uma pedreira a fazer extracção mesmo ao lado de uma estrada – fica
regularizada.
Com o Estado transformado no
fim de si mesmo deixou de haver lugar para a responsabilidade do Estado.
Portugal tornou-se uma imensa EM255.
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