domingo, 25 de novembro de 2018

Evidentemente irresponsáveis




Helena Matos OBSERVADOR

Durante 24 anos o Estado soube que uma estrada podia ruir. Nesses 8760 dias inspeccionou galheteiros, criou registos nacionais para galinhas e montou um big brother fiscal. Só nunca fechou a estrada.

“Não há evidências” de responsabilidade do Estado” – declarou António Costa a propósito do desastre de Borba. Ouve-se e não se acredita. Ou melhor não se quer acreditar. Porque se acreditarmos teremos de admitir que o nosso Estado é inimputável e que António Costa não só sabe disso como tira partido disso.
Mas esta frase não é apenas mais um exemplo da retórica da impunidade praticada por um político que se acredita acima de qualquer contestação enquanto for mantendo satisfeitos os seus parceiros de Governo. Aquilo que está espelhado nesta afirmação é sobretudo aquilo em que o Estado português se transformou: uma burocracia que se tornou no fim de si mesma. Uma máquina em que ninguém assume responsabilidades mas em que todos podem dizer que cumpriram com as suas funções. Em resumo, uma estrutura em que os cidadãos não podem confiar.
Recapitulemos: desde 1994 que à administração pública chegava informação sobre a degradação rodoviária na zona de extracção dos mármores de Borba-Vila Viçosa. Em 1998 já o Plano de Urbanização de Borba previa a desactivação da EM 255. Em 2002, 2008 e 2015 o Instituto Superior Técnico e a Universidade de Évora fizeram estudos e produziram relatórios onde alertavam para a gravidade da situação. Estes estudos foram dados a conhecer pelos menos à Direcção Regional da Economia do Alentejo e à Câmara Municipal de Borba. Ninguém fez nada.
Contudo durante os 8760 dias desses 24 anos em que a estrada que liga Borba a Vila Viçosa se ia desfazendo o Estado português perseguiu colheres de pau e galheteiros. Atirou-se com fúria reguladora às bolas de Berlim e ao pão com sal. Arvorando-se líder de um alegado avanço civilizacional, o Estado passou a meter-se cada vez mais na vida das empresas, determinando o sexo dos seus quadros, a linguagem que devem usar e exigindo-lhes catequeses ideológicas sobre igualdade de género. Quis salvar o planeta e logo concluiu que devemos usar papel e não plástico, bicicletas, trotinetas e lâmpadas primeiro de baixo consumo, depois led e depois se verá. A nível local as câmaras foram trocando a engenharia pela sociologia: fechar uma estrada pode tirar votos. Pelo contrário, organizar festas e passeios só gera boa imprensa.
Entretanto durante os 8760 dias desses 24 anos a informação sobre o que estava a acontecer na EM 255 circulava entre as secretárias de doutores, assessores, funcionários, engenheiros, arquitectos, advogados… tudo certamente cheio de assinaturas e rubricas. Envelopes, dossiers e folhas de rosto registavam as sucessivas étapas dessa peregrinação pelos interiores da máquina estatal ela mesma sempre em reestruturação. É um guião de filme de terror tentar seguir o rasto desta informação entre a Direcção Regional da Economia do Alentejo, Instituto Português de Qualidade, Direção-Geral de Energia e Geologia, Inspecção-Geral do Ministério do Ambiente… porque obviamente se constata que entre a informação que se perde mais os organismos que mudam de tutela, o que é urgente passa a secundário, o que é importante logo se esquece. Ninguém é responsável por nada. E todos fizeram o que estava certo.
Ao longo dos 8760 dias desses 24 anos a voracidade por recursos levou esse mesmo Estado a níveis de intrusão na nossa vida nunca conseguidos por quaisquer serviços de informações: desde o formato das cadeiras das esplanadas ao número de porcos, cabras e ovelhas que cada português pode afectar ao seu auto-consumo tudo está regulado, logo taxado. Mede-se com rigor de centímetros o diâmetro dos vasos que os lojistas colocam na porta das respectivas lojas, o número de jarras em cada campa dos cemitérios e obrigam-se os proprietários das galinhas poedeiras a declararem anualmente quantas galinhas possuem. Tudo está regulado, medido e avaliado em função da recolha dos impostos, taxas e contribuições. A legalidade tornou-se um conceito fiscal: paga-se a taxa e a situação por mais absurda que seja – por exemplo uma pedreira a fazer extracção mesmo ao lado de uma estrada – fica regularizada.
Com o Estado transformado no fim de si mesmo deixou de haver lugar para a responsabilidade do Estado. Portugal tornou-se uma imensa EM255.

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