Dos séculos XVI a XIX, 37% das viagens de navios negreiros iniciaram-se no
Brasil, 31% na Grã-Bretanha, 13% em França, 5% na Holanda, outros 5% nas
Caraíbas e que só menos de 4% partiram de Portugal.
Pedro Lains escreveu recentemente sobre o antigo tráfico transatlântico de
escravos, concebendo-o como trágica parte de uma rede de comércio global — o
que é correcto — e sugerindo que Portugal e os países ocidentais em geral terão
de pedir oficialmente desculpa por terem estado envolvidos nele, e prevendo,
até, que esse pedido acabará por surgir futuramente. Já por diversas vezes
contestei a exigência do pedido de desculpas e não vou repetir-me aqui. No
âmbito de um debate que já dura há ano e meio parece-me mais útil insistir nos
aspectos em que Pedro Lains tem razão, e trazer à superfície outros que ele não
focou e que são, a meu ver, muito importantes.
O texto de Pedro Lains tem a grande vantagem de apontar o carácter
multinacional do tráfico negreiro. O autor fala-nos em “navios saídos de
Lisboa, carregados de panos vindos da Índia, usados para pagamento dos escravos
na costa africana, depois traficados para o Brasil, onde os negociantes locais
os pagavam com prata, adquirida a troco de ouro no Rio da Prata, na actual
Argentina, prata essa que era depois remetida para Lisboa, usada para pagar os
panos comprados na Índia e assim fechar o círculo”. Diz-nos que “os capitais
deste comércio podiam ser portugueses, brasileiros, indianos, espanhóis,
ingleses ou holandeses, seguindo os fluxos financeiros de então, cada vez mais
globais”. E logo acrescenta que “nesta história, entram os comerciantes e
traficantes de Lisboa e do Brasil, os traficantes africanos, os colonos
espanhóis do Rio da Prata, os comerciantes indianos, e os capitalistas de
várias origens. Toda uma rede global em que os africanos escravizados se viram
envolvidos, enquanto elo mais fraco. Esta visão alargada do tráfico de escravos
mostra a complexidade da operação e a multiplicidade das responsabilidades”.
Pedro Lains tem toda a razão quando acentua “a multiplicidade de
responsabilidades”, algo que também tentei explicitar num artigo no Observador.
E tem igualmente razão quando lembra que o tráfico de escravos terminou “quando
era ainda negócio rentável e por deliberada acção política, guiada pelo
iluminismo e pela incipiente opinião pública de então”. Há, todavia, um aspecto
em que não tem razão, ou antes, em que teria sido possível e desejável
esclarecer melhor o que efectivamente se passou. A visão que Lains nos
transmite não é suficientemente representativa porque é concebida em termos de
tráfico triangular, um conceito que só se aplica marginalmente ao caso
português. A ideia, ainda muito comum entre nós — e que Pedro Lains sugere e
difunde no seu artigo —, de que os navios saíam de um porto europeu, aportavam
às costas africanas, viajando daí para as Américas carregados de escravos, para
depois regressarem à Europa com produtos coloniais, adequa-se aos casos inglês
ou francês, por exemplo, mas ajusta-se muito mal ao caso português. Quem
consultar o Atlas of the Transatlantic Slave Trade (2010), da autoria de David
Eltis e David Richardson, os responsáveis pela muito citada Trans-Atlantic
Slave Trade Database, verificará que, dos séculos XVI a XIX, 37% das viagens de
navios negreiros se iniciaram no Brasil, 31% na Grã-Bretanha, 13% em França, 5%
na Holanda, outros 5% nas Caraíbas e que só menos de 4% partiram de Portugal —
3,8%, para ser mais exacto. Os restantes navios partiram dos Estados Unidos, de
Espanha, do Uruguai, dos estados bálticos e, até, da própria África.
Pedro Lains não tem esses factos em devida conta. Foca-se exclusivamente
nos números brutos da Trans-Atlantic Slave Trade Database para concluir, em tom
de recomendação ou de exigência, que “a participação de Portugal e do Brasil,
enquanto colónia, nesta gigantesca operação tem de ser entendida”. Deve, de
facto, ser bem entendida, mas uma das primeiras coisas que devemos entender é
que o envolvimento directo de Portugal continental nos 5,5 milhões de escravos
embarcados em África com destino ao Brasil foi limitado. O tráfico no âmbito do
império português fez-se quase sempre da América para África e retorno à
América, sem passar por Lisboa. Quase não houve tráfico triangular no sentido
literal da expressão e, para adquirir escravos na costa africana, os negreiros
recorreram muitas vezes a produtos americanos, como a aguardente de cana, por
exemplo. O problema do comércio de escravos é, como não me canso de repetir, um
problema afro-brasileiro, no qual Portugal riscou menos do que se julga.
Claro que poderá sempre alegar-se que no período colonial, até 1825, o
Brasil foi uma possessão da Coroa Portuguesa e que, por isso, fazia tudo parte
do mesmo bolo, sendo indiferente o local de onde partiam os navios negreiros.
Mas é preciso perceber as circunstâncias e as nuances — e é também e sobretudo
para isso que serve a História. De facto, outra das coisas que tem de ser
entendida é que parte do tráfico de escravos foi feito à revelia dos interesses
e directivas de Lisboa. Pense-se, desde logo, naquele que foi feito de 1825 em
diante para um Brasil já independente (1,25 milhões de pessoas). Mas mesmo o
que se fez anteriormente correu, por vezes, fora dos canais estipulados e
desejados.
O caso mais elucidativo é o da chamada Costa da Mina, que corresponde
aproximadamente à faixa litoral que vai do Gana à Nigéria. Em meados do século
XVII, com Angola ainda em mãos holandesas, D. João IV autorizou os comerciantes
brasileiros a irem transitoriamente à Costa da Mina adquirir escravos. Sucedeu,
porém, que os baianos encontraram aí compradores para o seu tabaco de refugo,
que não tinha qualquer outro aproveitamento económico. Abriram, desse modo, um
escoadouro comercial importante que, para além de permitir a colocação de um
subproduto da produção tabaqueira, servia de pretexto para o contrabando com
holandeses, ingleses e franceses que frequentavam os mesmos pontos,
nomeadamente Ajudá. Quando, nas primeiras décadas do século XVIII, a Coroa
Portuguesa tentou que os brasileiros deixassem o mercado de Ajudá e voltassem
ao trato em Angola, eles resistiram, alegando que em Luanda e Benguela o tabaco
de refugo não teria procura e que, não podendo vendê-lo na Costa da Mina,
deixariam de ter interesse em cultivar a planta, com o que todos perderiam. A
Coroa teve de ceder.
É verdade que os governos e interesses de Lisboa tentaram imiscuir-se no
negócio e na administração dessa nova rede escravista, mas sem grande sucesso.
E sempre que procuravam impor regras e restrições àquele trato, os comerciantes
da Bahia e de Pernambuco passavam a frequentar outros locais, como Porto Novo
ou Onim. Assim, o poder central resignou-se à impossibilidade de quebrar esse
laço e a Costa da Mina revelar-se-ia uma das mais importantes áreas do comércio
negreiro, como tal permanecendo até meados do século XIX.
São todas estas coisas que devemos compreender se quisermos ter uma visão
informada e equilibrada sobre o envolvimento de Portugal no tráfico de
escravos. Não basta dizer, sem apresentar termos de comparação, que se
embarcaram 5,5 milhões de escravos em África para os levar para o Brasil. É
preciso ir além desse número bombástico, ir mais longe e mais fundo — como,
aliás, Pedro Lains foi — para tentar perceber, entre muitas outras coisas, quem,
como e por que razão os vendeu, e quem, como e por que razão os levou. E
perceber também que, ao contrário do que por aí se diz, Lisboa não foi uma das
grandes capitais do tráfico negreiro — muito longe disso.
Historiador e romancista
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