Alberto Gonçalves –
OBSERVADOR
Mesmo que muitas mulheres,
gays ou pretos não concordem, nas sociedades patriarcais e machistas toda a
gente é vítima. Toda a gente menos os homens, brancos, broncos e
heterossexuais, que são culpados.
Em finais de Outubro, antes
de apanhar um voo no aeroporto de San Diego, precisei de usar os lavabos. Na
antiguidade, esta era uma actividade linear: uma pessoa entrava no
compartimento dedicado ao seu sexo, fazia o que tinha a fazer e estava
despachada. Felizmente, tais simplismos tendem a acabar. Em San Diego havia
três compartimentos, um para senhoras, um para cavalheiros e um terceiro
dedicado, passo a citar, a “todos os géneros”. E acrescentava o cartaz:
“Qualquer um pode usar esta casa de banho, independentemente da identidade ou
expressão de género”. O cartaz era ilustrado com quatro bonecos, o primeiro
trazia saia, o segundo trazia calças (ou exibia-se nu, o grafismo não primava
pela clareza), o terceiro trazia saia apenas numa perna e o quarto parecia uma
criança, embora pudesse ser um anão. De repente, a actividade em questão perdeu
a antiga espontaneidade e transformou-se numa escolha complicada. Sendo homem,
devia usar a zona dos homens ou a de “todos os géneros”? E a zona “todos os
géneros”, aperfeiçoamento da ancestral “unissexo”, não anula as restantes, cujo
espaço podia ser aproveitado para um novo Starbucks? E as crianças, não têm
sexo (vade retro)? Encontrava-me nestas divagações quando a natureza, essa
construção social, me recordou dos motivos que me levaram ali. Segui a opção
conservadora, mas, radiante com os avanços civilizacionais, fiquei a meia-hora
seguinte a contemplar, ao longe, a porta dos lavabos “inclusivos”, esperando
deparar com uma fila de “cross-dressers”, mulheres barbudas, funcionários do
fisco, fãs dos Queen e anões. Num aeroporto internacional repleto, não entrou
lá ninguém. Mera coincidência. No mundo desenvolvido, em breve qualquer lavabo
público terá uma sala para cada letra do acrónimo LGBTQI%ORN#F*AP+.
A introdução acima serve
dois propósitos: a) sugerir que sou um tipo viajado; b) lamentar que, no mundo
atrasado, leia-se em Portugal, rebente um pequeno escândalo após um deputado do
BE ousar adicionar o “camarados” ao “camaradas” e, de seguida, assinar um
artigo no “Público” a justificar a afronta. Ou seja, no que toca a abolir o
pérfido “binarismo de género”, por aqui ainda vamos no estado embrionário. Por
aqui, ainda se procura “afirmar” as mulheres (as “camarados”) contra o que o
deputado Pedro Filipe Soares define, e bem, por “modelo patriarcal e machista
de sociedade” (os “camaradas”). Sobre as inúmeras identidades e os inúmeros
géneros que faltam, nem uma palavra.
Os Camarados |
E há palavras a dar com um
pau (na cabeça dos reaccionários). No inglês, os “activistas” heróicos e semi-alfabetizados
que fintaram “history” com “herstory”, agora lutam para substituir os pronomes
masculinos e femininos (he, him, she, her, etc.) por pronomes não
discriminatórios como “ze”, “hir”, “xe”, “xem”, “xir”, “hy”, “hym”, “hys”, etc.
Além da destruição da gramática, que é fascista, isto facilita imenso o
convívio, embora o ideal fosse a/o pessoa/o decidir o pronome que lhe convém
(para mim, eu arriscaria um “t?ç”). Claro que a ausência de distinção de género
nos substantivos ingleses favorece o avanço dos anglo-saxónicos na matéria. No
português, deparamo-nos com a necessidade de alterar, pela lei e pela marreta,
milhares de vocábulos de modo a torná-los “inclusivos” (“camarada/camarado” –
ou camarady?, “leninista/leninisto” – ou leninist©?, “chalupa/chalupo” – ou
chalupx?). Na língua e em tudo, a “inclusão” é um conceito essencial.
Os Camarados |
Porquê? Ora essa: porque
somos todos iguais, e é ofensivo não respeitar a igualdade. Então porque é que
as políticas “identitárias” dividem a população em dezenas de “minorias” e
grupos? Porque a divisão em classes não funcionou e porque somos todos
diferentes, e é ofensivo não respeitar a diferença. A “ofensa”, que advém do
“abuso” e provoca o “sofrimento”, é outro conceito basilar. Promover uma mulher
a chefe sem a chamar de “chefa” é um abuso, que ofende a senhora, fá-la sofrer
e, em poucos dias, conduz invariavelmente ao suicídio. E idêntica tragédia
acontece com o/a moço/a de género fluído que não dispõe de uma casa de banho
fluída, ou com o candidato preto, perdão, negro, perdão, afro-algures a quem
não são oferecidas quotas de acesso à universidade a título de reparação da
escravatura: abuso, ofensa, sofrimento, pulsos cortados. Mesmo que muitas
mulheres, gays ou pretos não concordem, os seus auto-designados porta-vozes não
permitem dúvidas: nas sociedades “patriarcais e machistas”, toda a gente é
vítima. Toda a gente, excepto os homens, brancos e broncos e heterossexuais,
que são culpados.
No fim de contas, custa
alguma coisa estrafegar a língua e os costumes por decreto para implementar a
cartilha moral do activismo “identitário”? Salvo pela subjugação a fanáticos,
não custa nada. Conforme lembram os sacerdotes da causa, basta um bocadinho de
tolerância, empatia, gentileza – e é por isso que os sacerdotes odeiam de morte
os infiéis. Sejamos tolerantes: odiemos com eles. É facílimo, já que não requer
inteligência, rigor, conhecimentos especiais ou a mínima noção da realidade e
do ridículo. Avante, camaradas e camarados, o progresso espera-nos. E a
progressa também.
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