Queremos mesmo entregar a
responsabilidade de organizar o ensino a câmaras municipais com realidades tão
díspares?
3 de Outubro
de 2018
Em New Jersey (NJ), nos Estados Unidos da América, as escolas são da responsabilidade das autoridades locais. Num processo que teve início há
várias décadas, e sob o argumento de aumentar a transparência e clareza com que
são gastos os dinheiros públicos, procurou-se aproximar a capacidade de
determinar o futuro das escolas e do ensino às comunidades locais de pais,
professores e alunos e, portanto, relocalizar a decisão através de um processo
que se acreditava ser capaz de dinamizar uma maior participação política e
cívica. Com isto ganharia a democracia e a educação. Só que não foi nada disto
que aconteceu.
NJ tem aproximadamente um quarto da área de Portugal e 577 distritos
escolares. As escolas são a principal rúbrica da despesa pública do
Estado a nível federal, mas a transferência para cada distrito tem
de obedecer a um esquema de proporcionalidade direta com a quantidade de
impostos que são recolhidos localmente. Ou seja, zonas mais ricas têm mais dinheiro para o ensino
e zonas mais pobres têm muito menos. Desta forma, a atividade
económica e a disponibilidade orçamental para a educação estão
irremediavelmente correlacionadas. Visto de outra maneira, a receita que
permite financiar o sistema educativo está diretamente dependente da capacidade
de cobrança de impostos que está, exclusivamente, associada à riqueza dos
habitantes da área.
Responsáveis pelos diferentes distritos escolares acabam assim por lidar
com orçamentos muito distintos. Um relatório de 2016 afirmava que no
distrito escolar de Avalon (uma das zonas mais ricas) tinham sido gastos 63 mil
dólares por aluno, enquanto no distrito de East Newark tinham sido gastos
apenas 14 mil dólares por aluno (menos de um quarto). Esta realidade tão díspar
de distribuição de meios para educar crianças e, portanto, determinar o seu
futuro, influencia o nível de investimento, os salários pagos, as condições
materiais e até as atividades pedagógicas e extracurriculares a que os jovens
de cada distrito têm direito. Para o leitor em Portugal, os nomes das terras
pouco significam. De facto, para o nosso argumento isso é pouco importante. O
relevante é que no futuro podemos estar a falar de disparidades semelhantes no
nosso país.
Mas, em termos regionais, existe um fator que importa sublinhar. A juntar a
isto, estudos sobre o mercado da habitação revelaram
que a qualidade dos serviços educativos prestados em cada distrito está entre
um dos cinco principais critérios que são avaliados na altura de comprar uma
casa. Assim, distritos com melhores escolas têm famílias dispostas a pagar mais
por uma habitação, os preços sobem e só os mais ricos é que podem pagar.
Distritos mais pobres têm tendência a ter piores escolas e a ver as suas casas
desvalorizadas, sendo assim um sítio onde os mais pobres se acabam por
concentrar. Um ciclo vicioso que promove a desigualdade, que condena as
crianças a terem uma educação diferente, um nível de oportunidades distinto, e
que enclausura regiões pobres enquanto elitiza regiões já ricas, numa
perpetuação interminável.
É essa a história de Trenton Road, em New Jersey, entre Hammonton e
Medford. Esta rua atravessa cerca de quatro distritos escolares e numa pequena
distância muita coisa muda. Aliás, o termo “mudar” é dizer pouco do que ali se
passa. Nessa rua há o distrito de Washington Township (Burlington County), onde
só 34% dos jovens acabam o secundário, e há o distrito de Medford Lakes, onde a
taxa de sucesso é de 98,4%. No distrito de Washington Township, o rendimento médio
de uma família é de 41 mil dólares, enquanto em Medford Lakes é de 207 mil
(cinco vezes mais).
Mas em New Jersey há mais disparidades que as estatísticas evidenciam. No
Distrito de Camden, o valor mediano de uma casa é de 83 mil dólares e apenas 6%
dos jovens obtêm uma licenciatura, enquanto em Alpine Borough o valor mediano
de uma casa é de mais de um milhão de dólares por ano e mais de 70% dos jovens
acabam a universidade. Imagine-se a diferença de orçamento gerada pela cobrança
de impostos.
Mas engane-se quem pensa que este texto é exclusivamente sobre os Estado
Unidos da América. O que é que isto tem a ver com a municipalização do ensino?
Tudo. Na verdade é também, e sobretudo, sobre Portugal. Se New Jersey criou
comissões para discutir como vai reverter o problema que está criado no seu
sistema de ensino, em Portugal estamos seguramente a dar um passo no caminho
errado. Com uma realidade local tão distinta como aquela entre Lisboa e a
Pampilhosa da Serra, ou Albufeira e Almeida, ou Barrancos e Almada, queremos
mesmo entregar a responsabilidade de organizar o ensino e a rede escolar a
câmaras municipais que têm um acesso tão díspar ao conhecimento, aos meios
necessários (técnicos e físicos) ou até capacidade de atraírem profissionais de
forma idêntica? Ainda assim, mesmo que as câmaras fossem organismos dotados de
iguais condições, sabemos hoje que também a composição social da população é determinante
na exigência colocada ao sistema educativo.
A juntar a isto, as semelhanças podem ser ainda mais inquietantes. Em
Portugal, uma parte significativa das receitas municipais dependem da atividade
económica da região (derrama e outras taxas) e há municípios mais ricos e
outros mais pobres. E dependem também significativamente da taxação da
propriedade (IMI). Estamos nós a cair na armadilha em que New Jersey caiu há 40
anos, fazendo depender a educação em cada concelho do dinheiro disponibilizado
por via de impostos, onde a componente local tem uma importância fundamental?
Não estaremos nós a abrir caminho para aprofundar ainda mais as diferenças
entre a qualidade do ensino em zonas mais pobres e mais ricas, que vários
estudos dizem ser já importante em Portugal?
Ninguém deve ficar refém do lugar onde nasceu. Em Trenton Road ficam. Ainda
que o que esteja hoje em causa, com a atual proposta de municipalização, não
seja uma alteração tão significativa como aquela que aconteceu em NJ ao longo
do tempo, a verdade é que poderá ser o início de um processo imparável em que
as disparidades já existentes entre municípios aumentem e ponham (ainda mais)
em causa o futuro de quem lá vive. A educação dos nossos jovens não deve estar
sujeita a esta discricionariedade, nem o ensino é uma área que deva servir como
tubo de ensaio para a chamada “descentralização”. Todos os cidadãos portugueses
devem ter acesso aos mesmos direitos constitucionais. Em NJ, a escola não
combate a inclusão e em alguns casos agrava ainda mais as desigualdades e
injustiças sociais. Isto é algo que não podemos deixar que aconteça em
Portugal.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico
Investigador na área do planeamento regional e urbano na Universidade de
Rutgers, Nova Jersey, EUA
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