(Coronel)
O degradante espectáculo da prisão do coronel director da Polícia
Judiciária Militar por elementos da Polícia Judiciária a propósito do que tem
sido designado “das armas de Tancos” coloca em causa, ou ofende, o consenso
estabelecido para a existência e o funcionamento do Estado moderno como garante
da ordem e a defesa da comunidade. Colide com os objectivos da criação de um
Estado democrático e de direito, acima dos interesses e ambições de grupos e de
indivíduos.
A prisão (ou, eufemisticamente, detenção) do comandante da Polícia Judiciária
Militar não foi e não é uma mera acção de polícia contra um presumível autor de
um crime apanhado em flagrante delito e que se prepara para fugir ou para
realizar novos crimes que colocarão em causa vidas e bens, é o afloramento de
uma luta pelo poder dentro do Estado, em que um dos seus corpos, o
policial/judiciário, se sentiu suficientemente forte e respaldado para humilhar
outro, as Forças Armadas, aquele a quem constitucionalmente incumbe a defesa
militar da República, a última instância onde esta é defendida.
A Polícia Judiciária Militar é um órgão das Forças Armadas, o seu chefe, ou
director, é um militar sujeito aos códigos e deveres da condição militar e o
Estado atribui um estatuto especial aos comandantes e chefes do corpo especial
constituído pelas unidades e serviços da instituição que garante a força
indispensável ao exercício da soberania para que possam cumprir a sua missão.
Este comandante foi tratado como um delinquente comum, em nome de uma falaciosa
invocação do conceito de igualdade perante a lei.
As Forças Armadas regem-se por princípios específicos, designados por
princípios da guerra. Um deles é o princípio do objectivo (Clausewitz), que
coloca o cumprimento da missão no centro de todas as acções de comando. Outro é
o da liberdade de acção, que permite ao comandante decidir o que fazer de
acordo com o desenrolar de uma situação. É por os militares estarem sujeitos a
estes princípios que a relação entre eles e o Estado (e vice-versa) assenta na
confiança mútua quer em tempo de paz quer de guerra. É esta confiança que
justifica a obediência e a disciplina entre os militares e entre estes e os
órgãos do Estado que servem.
A manutenção dessa confiança é essencial para a “saúde” do Estado, pois
trata-se de assegurar a eficácia do corpo em que assenta o seu poder, já que
governar é um efectivo exercício de domínio (Marcelo Caetano) e tratar com
justiça quem assume essas responsabilidades em seu nome e ao seu serviço não é,
certamente, criminalizá-lo antes de avaliar as condições em que tomou as
decisões. O Estado não pode deixar aqueles a quem atribui particulares
responsabilidades serem “executados” na praça pública como foi o director da
Polícia Judiciária Militar.
A guerra de polícias que levou o chefe da PJM a ser preso coloca os cidadãos
perante uma escolha essencial quanto ao tipo de sociedade e de Estado em que
querem viver. Ou sujeitos ao que Noam Chomsky classificou como um poder de
autómatos que trabalham a pilhas, onde o poder é exercido por zelotas não
eleitos nem democraticamente avaliados, ou numa sociedade onde o poder resulta
da vontade dos seus elementos e é exercido por homens e mulheres capazes de
adequar as acções às finalidades, de correr riscos, por alguém capaz da coragem
do proibido, do erro, como diria Churchill quando o acusaram de interpretar de
forma muito particular as suas funções durante a II Guerra Mundial.
O Diretor da PJM, do que se sabe, tomou decisões dentro da interpretação da
autonomia que ele fez do desempenho do seu cargo. Essas interpretações e os seus
resultados podiam e podem ser julgadas, mas o Estado, ao atribuir-lhe a
qualidade de chefe, concedeu-lhe o direito de errar e o direito de ser
respeitado, mesmo quando errou, se foi esse o caso. Sem a possibilidade de
errar não há comando. Decidir é optar. O Estado, ou concede esse direito aos
chefes dos seus corpos, ou o melhor é abdicar de agir, de se defender. O que
não pode acontecer é os mais altos dirigentes do Estado, os eleitos, assistirem
impávidos ao espectáculo de corpos subordinados do Estado a manobrar como
bandos rivais em luta pelo domínio de um território.
Sendo uma questão de Estado, os dirigentes que os cidadãos elegeram para os
representar, Presidente da República, deputados e governo, têm o dever de
colocar esta guerra de polícias no topo da decisão política. Ela é um caso de
política e não de polícia, nem de justiça. Chamá-la ao patamar da política não
é atentar contra a “autonomia do ministério público” e o Estado de Direito, é
defendê-lo, introduzindo bom senso e sentido de Estado onde ele foi substituído
pela acção acrítica, a-histórica, justificada pela interpretação mecânica e
quadriculada (para não dizer quadrada) da letra da lei. Com objectivos que
importa esclarecer.
A segurança nacional não estava e nunca esteve em risco nem antes nem,
menos ainda, depois de entregues (aparecidas) as quase todas anacrónicas “armas
de Tancos”, mesmo incluindo as munições de 9 mm, agora apresentadas como
terríveis ameaças. Porém, o Estado e as suas instituições ficaram mais fracos
após o espectáculo da prisão do director da PJM, no seu posto e perante as
câmaras das televisões, numa encenação idêntica à da detenção do antigo
primeiro-ministro José Sócrates e, porventura, com os mesmos fins: demonstração
de força, enfraquecimento do Estado democrático, e sua captura por um grupo que
se assumiu como incorruptiveis e arroga do monopólio da defesa da lei e da
ordem. Super-polícias, super-juízes, justiceiros típicos dos Estados em
desagregação.
A segurança nacional e a “boa” justiça, que devem ser fundamentos da acção
do Estado, também não estavam nem estão em tal risco que seja (como foi)
indispensável ao nosso descansado bom dormir mandar vir a toque de sirenes um
oficial em missão na República Centro Africana, integrado numa força
devidamente comandada e integrada pelas Nações Unidas, para prestar declarações
a propósito da sua intervenção num caso em que as armas (nenhuma delas de
destruição em massa!) estavam já recolhidas e a encarcerá-lo, porventura, na
Casa de Reclusão de Tomar, sempre acompanhado por câmaras de televisão.
Será ingenuidade acreditar que o alarme público desencadeado a propósito
“das armas de Tancos”, que a repetição do espetáculo mediático da prisão de um
alto quadro, agora das Forças Armadas, e a sua exposição ao julgamento popular
se deva a um estúpido afloramento de ditadura burocrática, de falta de senso e
sentido das proporções de um director geral, ou de um magistrado. Estes “tratos
de polé”, resultando ou não de uma intenção deliberada, subvertem os
fundamentos do Estado democrático, e transformam-no num estado policial e
judicial, apenas formalmente representativo dos cidadãos e dos seus interesses.
Este novo espetáculo de prisão para as câmaras é, numa leitura direta, uma
demonstração de força e de poder de um grupo que já se sente suficientemente
robusto para afrontar as Forças Armadas.
É este grupo que, invocando a justiça e os artigos dos seus códigos, coloca
em causa a segurança nacional e não o pobre diabo (que pode não passar de um
mero instrumento) que terá roubado as armas, ou mesmo o director da PJM e dos
GNR que, tanto quanto se sabe, são acusados de terem mantido contactos e
trocaram informações com ele. Estabelecer e manter ligações com elementos mais
ou menos inseridos no mundo do crime é, a acreditar em inúmeras séries e filmes
de detectives e marginais, uma acção comum em polícias. São ações, ou
encenações, que a PJ, agora tão lesta na denúncia do “crime”, certamente
praticou e pratica com regularidade e proveito. Ou não?
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