Por um instante, acreditei que haveria vida inteligente algures entre o
“feminismo” e o “machismo”. Já não acredito. Aliás, começo a não acreditar em
coisa nenhuma e a apreciar poucas.
É possível que deixar de fumar, de beber e de investir as poupanças na
roleta implique benefícios a longo prazo. Deixar de ver televisão traz
benefícios imediatos. O mais recente é ser poupado à catrefada de programas
dedicados à violação alegadamente cometida pelo futebolista Cristiano Ronaldo
em Las Vegas. Os ecos que me chegam (e sobram) pelo Facebook dão-me conta de
mesas redondas cercadas de especialistas especializados em proferir atoardas. É
daqueles casos em que imaginamos exactamente o que estamos a perder: lixo.
Por regra, este alvoroço em redor dos abusos sexuais costuma confrontar
duas escolas de pensamento. A escola “machista” acha todas as acusações
infundadas e obra de galdérias interessadas em dinheiro e/ou fama. A
“feminista” considera todas as acusações verdadeiras e todos os actos
perpetrados a coberto de um “sistema” patriarcal e opressor. A escola
“machista” desvaloriza a autonomia e o arbítrio das mulheres. Por diferentes
caminhos, a “feminista” também. A escola “machista”, informal e tosca, é irredutível
nas suas convicções. A “feminista”, organizada e metódica, tem dias.
Se, por exemplo, uma das medalhadas em sofrimento pelo #MeToo é suspeita de
marotices sobre um rapaz adolescente, boa parte do “feminismo” decreta logo as
denúncias falsas e indignas de sequer serem levadas em consideração. E se,
outro exemplo, as denúncias provêm de uma americana que, em vez de comprometer
um juiz escolhido pelo sr. Trump, compromete o sr. Ronaldo, certo “feminismo”,
pelo menos de extracção caseira, sofre novo abalo e procede, hesitante, à
desvalorização da fêmea em causa para não desvalorizar o motor do orgulho
pátrio. Aqui, escusado notar, o “machismo”, que nunca hesita, fica a um passo
de propor o esquartejamento da tal senhora.
E andamos nisto, que me interessa tanto quanto as infusões de camomila. Por
um instante, acreditei que haveria vida inteligente algures entre o “feminismo”
e o “machismo”. Já não acredito. Aliás, começo a não acreditar em coisa nenhuma
e a apreciar poucas. Marxistas. Budistas. Fascistas. Benfiquistas.
Nacionalistas. Bairristas. Papistas. Activistas. Ciclistas. Maoistas.
Catequistas. Socialistas. Alquimistas. Sambistas. Sindicalistas. Artistas.
Bilharistas. Etc. Por definição tácita, os “istas” deste mundo são criaturas
com desesperada necessidade de pertença a algo que os transcenda, em quantidade
e, pensam eles, em qualidade. Pode ser uma ideologia, um culto, um clube, uma
associação, um tique partilhado por um grupinho razoável.
Cumpre-me informar que jamais senti semelhante carência. Se sentisse,
estaria tramado, visto não me ocorrer um único critério que me aproxime, por
acordo ou telepatia, de qualquer amontoado de gente. Assim por alto, sou,
porque calhou, homem, caucasiano, português, heterossexual e ateu. Existe
alguma afinidade inata ou adquirida que me vincule aos restantes homens,
caucasianos, portugueses, heterossexuais e ateus? A resposta é não. Ou não,
cruz credo. Ou não, a que propósito? A “identidade”, que em décadas esmagou a
luta pela igualdade a benefício da histeria pela “diferença”, é um delírio
infantil, e as políticas que a utilizam são uma fraude concebida para
arregimentar pasmados.
A “integração” em bandos afinal abstractos, fundamentada em características
fortuitas como a naturalidade, o sexo ou a cor da pele, será na melhor das
hipóteses um descanso para cabecinhas desnorteadas. Na pior, serve para as
cabecinhas se sentirem superiores, exigirem privilégios e proibições,
alimentarem conflitos e, em última instância, dividirem sociedades sustentadas
pelos sempre débeis laços civilizacionais de modo a facilitar o reinado de
oportunistas, súmula competente dos “istas” em geral.
Acerca do assunto – ou da falta dele – na ordem do dia, eis a minha
opinião: não tenho. Vejam lá (de que maneira?) se o sr. Ronaldo é culpado e, se
sim, prendam-no. Ou apurem (de que maneira?) se a senhora é mentirosa e, então,
prendam-na a ela. Ou enviem o prof. Marcelo para distribuir comendas por ambos.
Ou vão dormir e não incomodem com indigências as raras pessoas que não querem
ser incomodadas com indigências, por acaso uma “identidade” que eu assumiria
sem esforço nem vergonha.
Nota de rodapé:
Em Tancos, um crime foi deliberadamente encoberto, o que constitui outro
crime. Felizmente, ninguém que importe soube de nada. Nem o ministro (que, em
seu abono, nunca sabe de coisa alguma), nem o primeiro-ministro (ele seja cego,
surdo e – peço a Deus – mudo), nem Sua Excelência, o Comandante Supremo e
Impecável das Forças Armadas (aquele senhor das “selfies”). É uma sorte
tremenda, dado que a evidente inocência destas personalidades permite-lhes
continuar a mandar competentemente no país em vez de irem parar ao olho da rua
ou, fosse este um lugar diferente (digamos), à cadeia. Na cadeia está uma
figura menor, cujo nome não recordo e cuja ausência não perturba a nossa
imparável marcha rumo ao ridículo, perdão, à glória final.
Nota do autor: o autor vai de férias. Regressa dia 27.
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