Enquanto a esquerda sonha em
subjugar a natureza humana à lei, a “direita” reza para que a lei a limite, o
que não sendo o mesmo é igualzinho. Uns querem aval do Estado, os outros a
objecção do Estado.
Não tenho opinião definitiva, ou
sequer provisória, sobre o suicídio assistido. Se tivesse, provavelmente não a
divulgaria aqui, jáque não sou grande adepto da pornografia “confessional” em
voga. Em toda a recente histeria, o único pormenor notável foi a pretensa
equivalência, mais ou menos unânime, entre a eutanásia e a liberdade
individual. A sério? Repare-se nos partidários da despenalização: o Bloco em
peso, o PS quase em peso, a ala marxista do PSD e aquele deputado entregue à
bicharada (quanto ao PCP, que jamais se preocupou com a morte de uma só alminha
exterior ao culto, votou contra por pirraça e exibição de “força negocial”).
Não parece esquisito que a defesa da liberdade individual dependa de alucinados
que ocupam as respectivas vidas a tentar suprimi-la? Se parece esquisito, é
porque é esquisito. E certamente falso.
Na eutanásia, como nas legalizações
do casamento homossexual, da “interrupção voluntária da gravidez”, do consumo
de drogas leves, da prostituição e do que calha de ser considerado “fracturante”,
recorre-se ao isco da “liberdade” para consumar o que afinal é um processo de
nacionalização dos comportamentos. Na vastíssima maioria das situações, as
pessoas conseguem matar-se, dormir com pessoas do mesmo sexo, abortar, injectar
silicone, consumir haxixe ou terebentina e frequentar casas de meninas às
segundas, quartas e sextas sem obstáculos relevantes e, sobretudo, sem
necessitar que o Estado seja informado a respeito. E é esse pormenor que
apoquenta a esquerda.
A esquerda, por tradição e vício,
nunca se ofendeu com o constrangimento das acções de cada cidadão: o que a
ofende é que o cidadão as pratique à revelia de um poder idealmente
ominipresente, para não dizer totalitário. Não importa o que os sujeitos podem
ou não podem fazer, contanto que não o façam fora de um quadro normativo, e
ideológico, tutelado por ministérios, comissões, direcções-gerais e geral
entulho administrativo criado para empregar os eleitos (digamos) e fiscalizar a
ralé. A coberto de um suposto entusiasmo face à possibilidade de “escolha”, a
esquerda procura garantir que a escolha é nula, ou no mínimo legitimada por
dois ou três decretos, com assinaturas reconhecidas, facturas, taxas e
emolumentos. Abortar numa clínica particular? Horror inominável. Abortar no SNS
do dr. Arnaut? Proeza cívica e avanço civilizacional. As “causas” da esquerda
não visam libertar o próximo, mas submetê-lo ao seu arbítrio.
E, perguntam-me (façam de conta que
sim), as “causas” da direita, ou daquilo que em Portugal passa por direita? No
fundo, no fundo, no fundo, não diferem muito. Por razões que me escapam, ou que
prefiro que me escapem, boa parte da “direita” disponível também se preocupa
imenso com a conduta íntima do semelhante. No caso, detesta que criaturas que
não conhece de lado algum durmam com criaturas de sexo idêntico, abortem, tomem
drogas, amputem a pilinha ou se desgracem de outras maneiras – e, em público ou
em privado, reclama proibições apropriadas. Enquanto a esquerda sonha em
subjugar a natureza humana à lei, a “direita” reza para que a lei a limite, o
que não sendo o mesmo é igualzinho. Uns querem o aval do Estado, os outros
querem a objecção do Estado. Do Estado, e da regulamentação quotidiana a seu
cargo, é que ninguém se livra.
Falta apurar se alguém, neste manso
país de patuscadas e bola, gostaria de se livrar. Umas dúzias de excêntricos,
talvez. Isto são demasiados anos de dependência larga e trela curta. E por isso
há uma espécie de ironia em ver tanta gente exigir morrer com dignidade
enquanto vive sem dignidade nenhuma.
Notas de rodapé
1. O eng. Guterres, personalidade
que em boa hora depositámos na ONU, anunciou um dia de jejum “em solidariedade
com os muçulmanos de todo o mundo”. Em vão. Por um lado, porque além de durar
um mês, não é a dieta o exercício que mais distingue e exalta (em ambos os
sentidos) os muçulmanos actuais. Por outro, porque ficar, por uma vez, sem
comer até ao pôr-do-sol – lapso que por esquecimento ou preguiça eu próprio
cometo com frequência – é manifestamente insuficiente para controlar o colesterol
desse grande estadista, cuja saúde tanto nos aflige. Só descansaremos quando o
vazio no estômago se comparar ao que lhe vai na cabeça. De qualquer modo, é
óbvio que o homem nasceu para o cargo que ocupa. E, com dietas assim, ocupa é o
termo.
2. Enquanto se sucedem maravilhosas
notícias sobre a economia caseira, o jornalismo que temos prefere ocupar tempo
e espaço com futebol. Assim nunca iremos a lado nenhum. E se formos não o
saberemos por falta de informação.
3. Parece que a sra. Merkel passou
por Portugal. Quase não se deu por nada, e há motivo para a discrição: ao
contrário de visitas – ou simples menções do nome – anteriores, a esquerda não
organizou uma manifestação, um protesto, uma vigília, uma rábula cómica, um
murmúrio sequer contra a outrora conhecida como “a Gorda”. Restaram apenas as
imagens da submissão risonha de Costa, o Esbelto, e a enésima confirmação de
uma gente tão peculiar que qualquer insulto pecaria por defeito.
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