Alberto
Gonçalves – OBSERVADOR
Fora
do manicómio em que saltita boa parte da “opinião”, o problema da Raríssimas
não é ser “particular” na designação, nos estatutos e na teoria: é não ser
particular na prática.
Desde
logo, destaca-se o espírito de iniciativa. Enclausurada no seu quiosque de
jornais, nos idos de 2000, Paula Costa sonhava com o futuro. A tempo, percebeu
que o futuro da imprensa tradicional tendia para o negro e desatou a matutar
numa alternativa airosa. A plausível falta de clientes permitia-lhe passar os
olhos pelos artigos que tentava vender e, entre as inúmeras notícias de
habilidades típicas de um país sério e formidável, procurar o que o vulgo
designa por saída profissional. Uma bela manhã (talvez fosse de tarde),
encontrou-a.
Como
os sindicalistas, os estudiosos da pobreza, os fotógrafos da fome e demais
benfeitores sabem perfeitamente, é fácil ganhar a vida à custa de desgraças
alheias. Difícil é descobrir uma desgraça que ainda não tenha sido apropriada
por almas caridosas. Por sorte, palavra aqui inconveniente, Paula Costa possuía
uma desgraça dentro de portas: um filho com uma doença rara. A contrariedade
“económica” (digamos) das doenças raras é que cada uma, isolada, não justifica
grande investimento, na atenção dos “media”, na compaixão do público, na
investigação científica, na caridade. Lembrar que, nos próximos 300 anos, 14
europeus morrerão de poliomielite não é um meio eficaz de comover o semelhante.
Por isso, Paula Costa juntou, salvo seja, diversas doenças invulgares e, para o
bem e para o mal, fundou a Raríssimas. O resto é história.
E é
uma história edificante. Aos poucos, Paula Costa trocou o pretexto declarado da
associação por objectivos não declaráveis: melhorar os níveis de conforto das
pessoas envolvidas, naturalmente a começar por ela própria. Principiou pelo
essencial, leia-se mudar o nome, a que acrescentou o “Brito” e o “e”. E
continuou a fazer o que os simples imaginam que as classes sofisticadas fazem:
ser arrogante para com os funcionários, passear-se em carro alemão, vestir
roupas de marca, viajar a “trabalho”, frequentar “ilustres”, chafurdar no PS,
etc., tudo alimentado pelo dinheiro despejado na Raríssimas. Tudo, ou quase
tudo, alimentado pelo Estado. A história de Paula Brito von Costa é, em larga
medida, a história do Portugal contemporâneo.
Porém,
o curioso não é a história, mas o escândalo que provocou. Em 2017, a maioria de
nós mantém intacta a capacidade de se espantar com a vocação indígena para a
trapaça, o abuso e as encantadoras contingências do convívio – sempre
desinteressado – com o poder e em especial o poder subjugado à ética
republicana. A piada é que a minoria finge interpretar o episódio ao contrário
e, numa espectacular demonstração da inteligência que atribui ao cidadão médio,
apressou-se a culpar os culpados do costume, isto é, os que ilibam os culpados
reais.
No
instante em que se descobriu a cumplicidade na tramóia de um ministro
confiável, um secretário de calções e um punhado de socialistas alegres, os
funcionários da propaganda lançaram a responsabilidade para cima da jornalista
Ana Leal (porque fintou a censura, perdão, o código de decência, perdão, as
regras de preservação da privacidade), da esposa de Cavaco Silva (porque era
madrinha da Raríssimas), de Pedro Passos Coelho (porque sim) e, principalmente,
do pormenor criminoso de a Raríssimas não pertencer ao Estado. Nas televisões
nacionais, vi aquelas criaturas que só caberiam nas televisões nacionais e na
figuração do “Walking Dead” jurar que as aventuras de Paula Brito y Costa se
devem à existência de entidades, e já agora de indivíduos, objectos,
sentimentos e bolas de Berlim exteriores à esfera pública. É inegável que a
importância da privacidade varia com as circunstâncias.
Fora
do manicómio em que saltita boa parte da “opinião”, o problema da Raríssimas não
é ser “particular” na designação, nos estatutos e na teoria: é não ser
particular na prática. Os truques de Paula Brito de la Costa, apenas
condenáveis pela origem dos financiamentos, não diferem dos praticados ou
invejados por milhões dos nossos queridos conterrâneos. Num lugar em que o
Estado asfixia o que pode, muitos acham o exercício erótico e, no lado certo,
lucrativo. Fora da esfera pública, sobra pouco. Nove em dez portugueses
(estimativa baixa) dedicam os respectivos expedientes, e horas extra, a catar o
patrocínio dos portugueses em redor. Uns vão directamente à fonte e alistam-se
na política e adjacências. Outros preferem simular independência empresarial.
Os terceiros, nem de propósito, ficam-se pelo “terceiro sector”, o da
“solidariedade social” e de Paula Brito van der Costa. Descontadas as excepções
da praxe, todos querem o mesmo. Em geral, conseguem-no. Em geral, até ao dia em
que o golpe se torna público, um raríssimo momento em que os portugueses
respeitam o que é privado.
1.
Em Bruxelas, o dr. Costa declarou 2017 “um ano particularmente saboroso para
Portugal”. Então não foi? A vasta maioria dos portugueses não morreu
carbonizada em fogos florestais. Nem todo o armamento militar acabou em mãos
duvidosas. Através da Web Sumitt, Lisboa abriu-se à iniciativa privada enquanto
a polícia perseguia condutores da Uber. Houve dias em que a Autoeuropa não
esteve em greve. Alguns pacientes hospitalares não faleceram a expensas da
legionella. A dívida pública continua a dispor do infinito para se estender. E
ganhámos a Eurovisão e a Bola de Ouro. Agora a sério: se, por perversão ou
primitivismo, o dr. Costa gosta de proferir insanidades, é lá com ele. Mas
podia limitar-se a fazê-lo para cá de Vilar Formoso. Uma coisa é sermos
enxovalhados cá dentro, passatempo que pelos vistos até apreciamos. Outra coisa
é saberem-no lá fora.
2. É
engraçado ver tanta gente aflita pelo facto de o sr. Trump cumprir uma promessa
dos seus três antecessores mais próximos e reconhecer a realidade: Jerusalém é
a capital de Israel. E é ainda mais engraçado notar que alguns dos aflitos
vivem em Lisboa, a qual, segundo os mesmos princípios de respeito pelo
pacifismo árabe, não pode ser a capital portuguesa, e na verdade nem sequer
pode ser portuguesa. Vamos lá então começar a desmantelar as embaixadas e
enviá-las para o Porto – ou, por via das dúvidas, para Oviedo. Se se
despacharem, vão a tempo de apanhar o camião de mudanças do Infarmed.
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