Nós
andámos décadas a alimentar a cleptocracia portuguesa sem que o povo tivesse
sequer reparado.
Os
angolanos chamam “gasosa” tanto às bebidas gaseificadas como aos subornos. Se um
polícia o mandar parar em Luanda por qualquer razão, ainda que absurda, é quase
certo que vai ter de pagar “gasosa”. Se precisar de um visto urgente, tem de
pagar “gasosa”. E sempre que exista qualquer participação num negócio
lucrativo, os angolanos, modo geral, querem “gasosa” pelo esforço. Claro que
nós, portugueses impolutos, tendemos a olhar para isto muito sobranceiros,
porque não temos de pagar “gasosa” à polícia nem aos funcionários das
embaixadas. É verdade, e ainda bem – ao nível da pequena corrupção somos, de
facto, um país muito mais sério e decente. Mas será que podemos dizer o mesmo
da grande corrupção? Tenho cada vez mais dúvidas. Quando olho para as elites
económicas e financeiras dos dois países, o que vejo é muita “gasosa” a
borbulhar tanto em Angola como em Portugal.
Se
há algum ponto em que me identifico com as queixas recorrentes de Luanda,
sempre que um alto quadro seu é investigado em Portugal, é esse: também a mim
me irrita a sobranceria de uma virtude inexistente. Perante as graves suspeitas
que incidem sobre o vice-presidente Manuel Vicente lá tivemos de levar com os
costumeiros protestos oficiosos e malcriados do regime, via Jornal de Angola.
Estamos habituados. Contudo, estou convencido de que aquilo que está subjacente
a tais insultos é a convicção por parte da elite angolana de que as práticas da
elite portuguesa em nada diferem das suas – por cada tampa de
"gasosa" que se abre em Luanda há uma garganta que se abre em Lisboa.
A única verdadeira diferença é que nós somos mais dissimulados, e não chamamos
“gasosa” à “gasosa”. A corrupção não está instituída em toda a sociedade. Está
escondida no seu topo.
Basta
olhar para a lista actualizada de arguidos da Operação Marquês. Há dez anos,
aqueles eram os homens mais poderosos de Portugal. A nossa mais destacada elite
económica. Os jornais faziam vénias à passagem de Zeinal Bava, de Henrique
Granadeiro ou de Ricardo Salgado. Havia entrevistas, perfis de sucesso,
conferências, influência e a habitual sabujice. Nós engolimos explicações que
jamais deveriam ter sido aceites por uma sociedade saudável, atenta e
minimamente exigente. Salgado recebia 14 milhões de um cliente do BES, chamava
a isso uma “liberalidade”, juntava pareceres de eminentes professores
catedráticos a justificar que uma “liberalidade” era coisa perfeitamente
aceitável – e o pessoal encolhia os ombros. Bava recebia 18,5 milhões do saco
azul do BES, só os devolvia depois de começar a ser investigado, de seguida
argumentava tratar-se um valor que lhe havia sido “confiado a título
fiduciário, consignado a uma finalidade legítima a concretizar em momento
futuro” – e a pátria não queria saber. Enfiavam-nos dois garfos nos olhos,
diziam que se tratava de uma operação às cataratas, e no fim ainda pagávamos a
conta.
Não
admira que os angolanos, que conhecem tão bem o senhor Bataglia, o senhor
Salgado ou o senhor Sócrates arranquem os cabelos de raiva quando assistem à
velha pátria lusitana de dedinho em riste, a perorar sobre a lastimável
cleptocracia angolana. Não é que ela não seja lastimável – com certeza que é.
Mas nós andámos décadas a alimentar a cleptocracia portuguesa sem que o povo
tivesse sequer reparado. Não somos melhores. Somos apenas mais hipócritas e
mais reservados. A “gasosa” é a bebida favorita das nossas elites – só que é
preciso chegar lá para nos abrirem a porta do bar.
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