sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Um bocadinho excelente demais


João Miguel Tavares - jornal Público

Quem viu a solidez, frontalidade e bons modos de António Domingues no Parlamento não pôde deixar de concluir que ele foi uma excelente escolha para a Caixa.
                                               5 de Janeiro de 2017

Passei metade do dia de ontem a assistir à audição de António Domingues no Parlamento  e fiquei ainda mais convencido de que a verdadeira razão para a sua saída é uma e só uma: António Domingues padece de excesso de profissionalismo. É como aquelas pessoas que vão a uma entrevista de emprego e descobrem que têm demasiadas habilitações para o lugar. Nalguns países, muito profissionalismo é óptimo. Em Portugal, é uma maleita, sobretudo quando se trabalha para o Estado ou em áreas onde a interacção com o Estado é muito forte. Um gestor que queira ser apenas gestor – ou seja, criar o máximo de valor para o seu accionista a partir dos recursos que tem à disposição, com independência e sem outras pressões que não os resultados financeiros – não vai longe.
Está na moda dizer mal do capitalismo. Só que o problema de Portugal é a falta de verdadeiro capitalismo. Falta gente que queira ganhar dinheiro concorrendo num mercado livre, através de decisões racionais e recursos privados. O que existe em Portugal é o capitalismo de compadrio – gente que quer ganhar dinheiro manipulando um mercado controlado, através de favores de amigos e recursos públicos. Estava a ouvir António Domingues e a lembrar-me do tempo em que Zeinal Bava era o jovem prodígio da PT, eleito melhor CEO da Europa no sector das telecomunicações em 2010 e em 2012. Não foram distinções injustas. Zeinal Bava era realmente bom. Ele fez um trabalho extraordinário na expansão do cabo, sempre a liderar na inovação tecnológica, e foi uma peça fulcral na construção do império que haveria de o engolir. “Portugal também pode ter o seu Sillicon Valley”, dizia então Zeinal, cheio de sonhos. Só que em vez de Sillicon Valley encontrou Ricardo Salgado. E a conclusão óbvia a tirar seria esta: Zeinal escolheu mal; em vez de se manter um gestor honesto e competente, optou por juntar-se ao lado negro da Força. Conclusão óbvia, mas errada. O dilema fundamental é bem mais grave do que esse. É saber se ele poderia algum dia ter feito a escolha certa e continuar a ser Zeinal Bava, o CEO da PT. A minha desolada resposta é: não, não podia. Não era possível estar à mesa dos grandes sem seguir as suas regras. Ninguém podia sonhar com um Sillicon Valley português e ignorar Ricardo Salgado.
Fast-forward para 2016: António Domingues achou que podia estar à mesa dos grandes na Caixa Geral de Depósitos e seguir novas regras. Afinal, depois da intervenção da troika, Portugal teve de mudar alguma coisa. Há mais vigilância e supervisão, logo, exige-se mais profissionalismo. Mas mudar alguma coisa não é mudar tudo. Aquilo que aconteceu na CGD, como bem resumiu José Gomes Ferreira, foi um “choque de culturas de gestão”. A entrada de Domingues “assustou a classe política”. E como disse Pedro Santana Lopes na SIC, ao lado de António Vitorino (o yin e o yang do statu quo), já era hora de Domingues “desamparar a loja”. A loja, bem-entendido, dos seus velhos amigos, que estavam a entrar em pânico com as reavaliações de activos e a nova política de acesso aos créditos de risco. É essa loja que Domingues teve de desamparar. Havia demasiado cheiro a independência no ar. E “a vida” – sábias palavras de Mário Centeno – “é o que é”. Pois é. Quem viu a solidez, frontalidade e bons modos de António Domingues no Parlamento não pôde deixar de concluir que ele foi uma excelente escolha para a Caixa. Infelizmente, no país que temos, foi uma escolha um bocadinho excelente demais.

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