O Dr. Jorge Lage, colaborador assíduo neste espaço, enviou-nos estes dois textos que já havíamos publicado neste blogue há uns tempos. Mas é o tipo de texto que fica sempre bem repetido, pelos princípios, pela nobreza de um homem que foi presidente da república. E porque aqueles que lhe tramaram a reforma, foram os mesmos (melhor dizendo, os herdeiros) que tramaram a vida de alguns entre 2005 e 2011.
Num país de bandoleiros (desde 2005) é um refrigério para a alma podermos contar com Homens deste calibre.
RAMALHO EANES I
Quando
cumpria o seu segundo mandato, Ramalho Eanes viu ser-lhe apresentada pelo
Governo uma lei especialmente congeminada contra si.
O
texto impedia que o vencimento do Chefe do Estado fosse «acumulado com
quaisquer pensões de reforma ou de sobrevivência» públicas que viesse a
receber.
Sem
hesitar, o visado promulgou-o, impedindo-se de auferir a aposentação de militar
para a qual descontara durante toda a carreira.
O
desconforto de tamanha injustiça levou-o, mais tarde, a entregar o caso aos
tribunais que, há pouco, se pronunciaram a seu favor.
Como
consequência, foram-lhe disponibilizadas as importâncias não pagas durante
catorze anos, com retroactivos, num total de um milhão e trezentos mil euros.
Sem
de novo hesitar, o beneficiado decidiu, porém, prescindir do benefício, que o
não era pois tratava-se do cumprimento de direitos escamoteados - e não aceitou
o dinheiro. Num país dobrado à pedincha, ao suborno, à corrupção, ao embuste, à
traficância, à ganância, Ramalho Eanes ergueuse e, altivo, desferiu uma
esplendorosa bofetada de luva branca no videirismo, no arranjismo que o
imergem, nos imergem por todos os lados.
As
pessoas de bem logo o olharam empolgadas: o seu gesto era-lhes uma luz de
conforto, de ânimo em altura de extrema pungência cívica, de dolorosíssimo
abandono social.
Antes
dele só Natália Correia havia tido comportamento afim, quando se negou a
subscrever um pedido de pensão por mérito intelectual que a secretaria da
Cultura (sob a responsabilidade de Pedro Santana Lopes) acordara, ante a
difícil situação económica da escritora, atribuir-lhe. «Não, não peço. Se o
Estado português entender que a mereço», justificar-se-ia, «agradeço-a e
aceito-a.
Mas
pedi-la, não. Nunca!»
O
silêncio caído sobre o gesto de Eanes (deveria, pelo seu simbolismo, ter aberto
telejornais e primeiras páginas de periódicos) explica-se pela nossa recalcada
má consciência que não suporta, de tão hipócrita, o espelho de semelhantes
comportamentos.
“A
política tem de ser feita respeitando uma moral, a moral da responsabilidade e,
se possível, a moral da convicção”, dirá. Torna-se indispensável “preservar
alguns dos valores de outrora, das utopias de outrora”.
Quem
o conhece não se surpreende com a sua decisão, pois as questões da honra, da
integridade, foram-lhe sempre inamovíveis. Por elas, solitário e inteiro, se
empenha, se joga, se acrescenta- acrescentando os outros.
“Senti
a marginalização e tentei viver”, confidenciará, “fora dela. Reagi como tímido,
liderando”. O acto do antigo Presidente («cujo carácter e probidade sobrelevam
a calamidade moral que por aí se tornou comum», como escreveu numa das suas
notáveis crónicas Baptista-Bastos) ganha repercussões salvíficas da nossa
corrompida, pervertida ética.
Com
a sua atitude, Eanes (que recusara já o bastão de Marechal) preservou um nível
de dignidade decisivo para continuarmos a respeitar-nos, a acreditar-nos -
condição imprescindível ao futuro dos que persistem em ser decentes.
Fernando Dacosta
Nota:
Já escrevi algures no Expresso um comentário sobre Ramalho Eanes, mas sinto-me
na obrigação de dizer algo mais e que me foi contado por mais que uma pessoa.
Disseram-me
que perante as dificuldades da Presidência teve de vender uma casa de férias na
Costa de Caparica e ainda que chegou a mandar virar dois fatos, razão pela qual
um empresário do Norte lhe ofereceu tecido para dois. Quando necessitava de um
conselho convidava as pessoas para depois do jantar, aos quais era servido um
chá por não haver verba para o jantar. O policia de guarda em vez de estar na
rua de plantão ao frio e chuva mandou colocá-lo no átrio e arranjou uma cadeira
para ele não estar de pé. Consta que também lhe ofereceram Ações da SLN-BPN,
mas recusou.
RAMALHO EANES II
Posso
acrescentar mais qualquer coisa do meu conhecimento pessoal, porque Ramalho
Eanes e Edgar Cardoso, além de amigos, admiravam-se mutuamente. Após o 25 de Abril, Edgar Cardoso foi saneado
de professor do Instituto Superior Técnico, porque segundo a acusação “fazia
pontes para o fascismo “, mas Ramalho Eanes dois ou três anos mais tarde
conseguiu a sua reintegração como professor catedrático e com direito a receber
todos os vencimentos durante todo o tempo em que foi impedido de lecionar. Foi
pura iniciativa do presidente e Edgar Cardoso foi apanhado de surpresa quando
Ramalho Eanes lhe deu conta do assunto, tendo imediatamente recusado essas
verbas, porque segundo entendia, se não tinha trabalhado, também não podia
receber. Ficou muito grato por recomeçar a dar aulas, mas disse ao presidente
que ficasse com os seus ordenados e que fizesse com eles o que entendesse.
Ramalho Eanes, desconfortável porque também não podia ficar com o
dinheiro, começou a pensar o que iria
fazer com ele. Um dia chamou o Professor e disse-lhe que tinha encontrado a
solução: iria fazer a Fundação Edgar Cardoso, que distribuiria, anualmente, os
juros do dinheiro, aos três melhores alunos da cadeira de Pontes e Estruturas
Especiais, em todo o país. Edgar Cardoso ficou encantado, mas não sabia como
agradecer ao presidente. Mais tarde,
também ele tinha descoberto a solução: como sabia que Ramalho Eanes, quando
deixasse de ser presidente jamais aceitaria que os impostos dos portugueses lhe
pagassem um gabinete, a que todos os antigos presidentes tinham direito,
resolveu oferecer-lhe um escritório, curiosamente num edifício chamado de
Presidente, escritório esse que lhe tinha sido oferecido por um amigo promotor
do edifício e a quem, como era seu costume, não tinha levado quaisquer
honorários pelo projecto.
Por
isso, Ramalho Eanes é o único ex-presidente da República que não beneficia
dessa prerrogativa de manter um gabinete próprio pago pelo Estado, ou seja, por
todos nós, os contribuintes portugueses.
Já
disse isto várias vezes, mas não me canso de repetir: Ramalho Eanes é um dos
raros exemplos de integridade e retidão: até podemos não gostar dele, mas temos
todos que o respeitar porque a sua nobreza faz dele um farol que ilumina a
escuridão do pântano de invertebrados corruptos em que se transformou este país
em que vivemos.
Faz-nos
acreditar que ainda há futuro para quem persiste em ter a dignidade de ser
decente.
João Cardoso
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