João Miguel Tavares
- jornal Público
Corruptos
e corruptores sempre existirão, como é óbvio. Agora, ser o próprio Estado a
pôr-se a jeito desta forma é impensável – e um escândalo sem nome.
Licenças sem vencimento
existem em todos os países desenvolvidos, e por excelentes razões: porque um
trabalhador decide investir na formação académica, porque tem familiares
doentes a necessitarem da sua presença a tempo inteiro, porque foi pai ou mãe e
quer dedicar dois anos da sua vida ao filho, porque o cônjuge foi deslocado
temporariamente para o estrangeiro, porque resolveu ir um ano para uma ONG,
inscrever-se no serviço militar ou empenhar-se num cargo político.
Desde que usada com
bom-senso e parcimónia, a figura da licença sem vencimento é uma conquista
civilizacional. Sara Carbonero pediu licença sem vencimento à Mediaset para acompanhar
Casillas na sua ida para o Futebol Clube do Porto. António Sampaio da Nóvoa
pediu licença sem vencimento à Universidade de Lisboa para poder candidatar-se
ao cargo de Presidente da República. São pedidos razoáveis, que os seus
empregadores aceitaram. Mas no microclima português, o bom-senso e a parcimónia
são espécies que medram com dificuldade, sobretudo na função pública. E, por
isso, a licença sem vencimento foi ganhando matizes muito pouco recomendáveis.
Aliás, num país onde a
obsessão pelo “quadro” é o alfa e ómega de qualquer trabalhador, ninguém avança
de peito aberto para um novo emprego quando tem a possibilidade de assegurar
primeiro o famoso “lugar de recuo”, reflexo evidente de uma cultura com pavor
do risco. Recordo que o próprio José Sócrates, após seis anos como
primeiro-ministro, e antes de partir para estudar em Paris, deu-se ao trabalho
(juro!) de requisitar uma licença sem vencimento das funções de engenheiro
técnico na Câmara da Covilhã. Só em Julho de 2013 pediu a exoneração dos
quadros do município, apesar de já não exercer funções na câmara desde 1987.
E dá-se isto: embora a
lei deixe vasto espaço para recusar a atribuição de licenças sem vencimento, a
tradição da função pública parece ter instituído em certos sectores uma espécie
de livre trânsito para o trabalhador desaparecer durante o tempo que quiser e
voltar quando lhe apetecer. Assim chegamos ao coração deste texto: o
extraordinário caso da Operação Fizz e do procurador Orlando Figueira.
O caso em si é
fascinante, mas o alegado envolvimento de Manuel Vicente e as perigosas
relações Portugal-Angola são apenas uma parte do fascínio, e não
necessariamente a maior. Mais do que com a investigação propriamente dita,
fiquei boquiaberto com a notícia de que Orlando Figueira pediu em 2012 um
licença sem vencimento para ir trabalhar para o sector privado, e que ela lhe
foi atribuída por unanimidade (!) pelo Conselho Superior do Ministério Público,
sem sequer querer saber para onde ele ia. A gente esfrega os olhos, lê outra
vez e não acredita. Um procurador com casos de milhões recebe do Estado um
livre-trânsito para ir trabalhar para quem lhe apetecer, pelo tempo que desejar
e mantendo o seu lugar nos quadros do Ministério Público (cereja em cima do
bolo: o tempo da licença sem vencimento conta para efeitos de antiguidade).
Depois disto, confesso
que fiquei mortinho por saber duas coisas. Primeira: quantos funcionários
mantém o Estado no seu quadro com licenças sem vencimento, enquanto trabalham
para o sector privado? Segunda: quantas dessas transferências configuram casos
de vergonhosa incompatibilidade, como é obviamente este caso? Corruptos e
corruptores sempre existirão, como é óbvio. Agora, ser o próprio Estado a
pôr-se a jeito desta forma é impensável – e um escândalo sem nome.
Correcção:
onde estava, erradamente, Conselho Superior de Magistratura, passou a estar
Conselho Superior do Ministério Público.
Sem comentários:
Enviar um comentário