Mercado Municipal de BRAGA |
Jorge Lage |
Óh Menina Rosinha, são deze e mais quê?
A cena passou-se na minha aldeia, a meados da década de
cinquenta do século passado, quando para nos deslocarmos a Mirandela tínhamos
de utilizar as famosas Barcas de Chelas no local que hoje se situa a Ponte das
Barcas..
Cada casa tinha de ser auto-suficiente em quase tudo, pelo
menos no dia-a-dia e, para pequenas necessidades (petróleo, vinho, açúcar,
arroz e massa), existia a Taberna da Cristina (Aniceto), mesmo em frente à
minha casa paterna.
Quando por ali passava alguma família cigana, ia pedindo aos
agricultores as batatas e outras necessidades, mas também compravam, quando a
isso eram obrigados.
A Tia Cristina, como lhe chamávamos na aldeia, foi mulher
generosa e de muita luta, criando e educando as duas filhas como ninguém. Até
cozia pão que vendia na taberna a alguns aflitos.
Certo dia a Cândida Cigana (se tinha mais algum nome nem ela
o sabia) pede-lhe que lhe venda um pão e pergunta-lhe o preço. A Tia Cristina
diz-lhe que custa doze escudos. A cigana fica baralhada e diz que é muito caro.
Depois, lembra-se de pedir ajuda à minha irmã Rosa.
Naquele tempo, a moeda base na aldeia eram os dez mil réis
(um escudo) e metade destes eram quinhentos réis ou uma crôa (cinquenta
centavos).
A simpática cigana fica baralhada com o preço. Como muitos,
só funcionava com as unidades e a referência decimal. E pergunta: - oh Menina
Rosinha, são deze e mais quê
- São dez e mais quatro crôas! - respondeu-lhe ela (ou seja,
doze escudos - 12$00).
- deze e mais quatro crôas! Assim está bem! -.e a cigana
deixou de «resgatear» o preço.
A partir deste episódio, quando alguém não percebia o
trivial, entrava o dito: «são deze e mais quê»?
Vem este episódio antigo à liça porque eu costumo comprar
muito do que preciso aos agricultores (de Braga, Vila Verde e Amares) que
vendem (directamente aos consumidores) os seus produtos no Mercado Municipal de
Braga. O mais barato do país.
Na manhãzinha do sábado de Ramos, comprei a uma lavradeira de
Amares umas tangerinas deliciosas e docinhas como o mel. Quando a senhora as
pesa diz-me:que passa dos três quilos e que é melhor fazer os quatro. Disse-lhe
que não. Então: - os três quilos e meio. Disse-lhe que queria aquelas que pus
no saco. A senhora disse-me que não me podia fazer a conta a três quilos e duzentas
gramas.
Contrapus: - Se me leva a setenta cêntimos o quilo, tenho que
lhe dar dois euros e vinte e quatro cêntimos.
Uma lavradeira ao lado atalhou e disse: - são dois euros e
meio.
- Se o quilo é a
setenta cêntimos - respondi-lhe - e os três quilos custam dois euros e dez
cêntimos. Cem gramas custam sete cêntimos e duzentas catorze, somando dá dois
euros e vinte e quatro cêntimos.
Esta cena fez-me avivar a memória daquela em que a minha irmã
foi protagonista dos «deze e mais quê», já lá vão uns sessenta anos.
O que é certo é que no mercado de Braga só se vendem em
fracções de meio quilo e unidades, a não ser que haja uma balança de cálculo
automático por perto. Manual ou mentalmente ninguém faz o cálculo prático como
o que referi.
O meu pai fazia essa conta mentalmente ainda que tivesse de
meter fracções e divisões. No seu tempo e no meu de criança, ninguém na aldeia
ou na «feira da bila» tinha papel e lápis à mão. Quem não conseguisse fazer a
conta do negócio de cabeça, dizia o meu pai que era «brutote» (leia-se burro).
Um dia o meu pai calou os mais «espertos» da minha família
numa contenda que se arrastava. Até já acusavam o meu pai, mais recto que uma
escritura, de querer favorecer o filho mais velho. Eu próprio fui levado para o
lado dos que faziam o cálculo com papel e lápis. Mas, depressa me passei para o
lado do meu pai quando, mentalmente, fez ao pé de mim a conta.
As nossas gentes do campo eram melhores que máquinas calculadoras.
O Miguel Tomé Mateus, pastor que serviu no rebanho dos serviços agrários do
Valongo era melhor a fazer contas que uma registadora, porque não se enganava e
as máquinas ao faltar-lhe as pilhas embrutecem.
Um dia, a meados do século XX, estariam na Maravilha a pesar
uma camioneta de azeitona saca a saca e ao pesar a última saca o apontador
tinha de fazer a soma. O Miguel, perguntou-lhe se ainda não sabia o peso da
carga, depois de se socorrer de papel e lápis? O apontador disse que tinha de
somar. Então o Miguel respondeu-lhe: - não é preciso fazer a conta, são «tantos
quilos».
O apontador somou e tirou a prova dos nove e ficou de boca
aberta. O Miguel era mais rápido sem lápis e papel.
Mas, o António Mateus, irmão do Miguel, que foi por muitos
anos pastor do casal dos Pinto Azevedo de Vale Pradinhos, era uma enciclopédia
a registar episódios do dia-a-dia. Qualquer acontecimento, tivesse um ano, dez
ou quarenta, referia-o sempre dizendo o mês, a hora solar do dia ou da noite e
o estado do tempo.
Eu, criança ouvia isto com espanto e admiração e também tive
que descodificar, matutando com os meus botões, a tabuada e as contas, mesmo
complexas, de uma forma lógica.
in: Notas de Rodapé (108)
Jorge Lage – jorgelage@portugalmail.com
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