Para quem não leu a revista Nós (27 de Fevereiro, 2010), aqui fica
um dos textos.
É a história de Pedro Choy.
Uma verdadeira inspiração para
quem tem a mania de se queixar muito da vida e fazer pouco para lhe dar a
volta.
Olhando para ele, para a forma dominadora como
fala, para o modo seguro como trabalha, avaliando as 18 clínicas que tem,
espalhadas por todo o país, ostentando o seu nome, metade português, metade
chinês, “Clínicas Dr. Pedro Choy”, medindo e pesando o homem, o médico, Pedro
Choy, ninguém diria, dessa análise precipitada e ligeira, que nasceu pobre. Mas
nasceu. Muito pobre. Tão pobre que só teve electricidade aos 15 anos. Tão pobre
que as instalações sanitárias da sua pobre casa, em Almeirim, eram no fundo do
quintal e consistiam num buraco feito no chão, rodeado por uma cabana de
madeira feita por si e pelos irmãos, com tábuas e pregos. Tão pobre que, todos
os anos, Pedro Choy e os irmãos tapavam esse buraco com terra e abriam outro
buraco ao lado.
Pedro Choy nasceu em Macau e veio com três
meses para Portugal, mais concretamente para Almeirim, onde vivia uma avó (mãe
do pai). Um ano depois, rebentou a guerra colonial e o pai foi para Macau, onde
ficou 14 anos. A mãe de Pedro Choy, chinesa, ficou sozinha com quatro filhos,
três rapazes e uma rapariga, numa terra estranha, sem falar uma palavra de
português. “A minha mãe, além de ser chinesa, vestia-se de uma forma
completamente chinesa. Naquela altura, em Almeirim, nunca ninguém tinha visto
um chinês. As pessoas andavam atrás dela como quem vê um extraterrestre. Faziam
fila para a ver. A ponto de, um dia, ela ter desatado a fugir e ter caído,
porque tinha medo. Por outro lado, o meu pai era o único adulto com quem ela
conseguia falar, dado que não falava português. É uma sobrevivente, a minha
mãe. Uma mulher muito especial.”
Quando chegou a Portugal, e
sobretudo a Almeirim, a mãe de Pedro Choy desconfiava que algo de muito sério
se passava. Acostumada à densidade populacional da China, estranhava a escassez
de pessoas. “O meu pai assegurava-lhe vezes sem conta que não havia nenhuma
espécie de guerra, que estava tudo bem. Não havia nem guerra, nem peste, nem
epidemias. Porque ela não conseguia acreditar que a população da terra fosse
mesmo só aquela, que não estava ninguém escondido.”
A avó de Pedro Choy morava numa
casa igualmente pobre, com chão em terra e divisões improvisadas pelos netos,
com tábuas. Era cauteleira e vidente. Na terra era conhecida como “a bruxa”.
“Lembro-me de passar de ouvir as pessoas dizer: ‘Lá vai o neto da bruxa’. Não
foi fácil. Fomos vítimas de chacota, não só por sermos pobres mas também por
sermos chineses. No meu caso, por exemplo, inventavam-me nomes. Chamavam-me
‘Choy-Roy-Foy-Coy-Moy…’, tudo acabado em oy.” Mas Pedro foi
educado para ser forte. O pai ensinou-o a dar como resposta:
“Pois é. É por isso que sou
melhor do que tu.”
Pedro Choy e os irmãos cresceram
e fortaleceram-se, num ambiente hostil. Apesar da pobreza, os “filhos da
chinesa” e “netos da bruxa” nunca andaram sujos nem nunca passaram fome:
“Podíamos usar roupas usadas, velhas, dadas, mas estavam limpas. Podia não
haver dinheiro para comprar carne mas tínhamos, pelo menos, arroz todos os
dias. Arroz e leite. Não passávamos fome, do ponto de vista quantitativo.”
Passar fome, passou mais tarde,
enquanto estudante universitário. Quando pediu uma bolsa de estudo e a viu
recusada, Pedro Choy sentiu uma revolta grande. “Eu era a pessoa mais pobre do
meu curso. Se eu não tinha direito à bolsa, quem é que tinha? Investiguei e
descobri que os bolseiros eram filhos de empresários, que pura e simplesmente
não faziam declarações de rendimentos.”
E assim, sem bolsa, foi
trabalhar. De resto, mesmo antes de entrar para a faculdade, aos 14 anos,
prevendo qualquer dificuldade tentou armazenar dinheiro e trabalhou na Compal, em Almeirim. Era
higienista, nome pomposo que, na prática, significava lavar a fábrica toda.
“Foi o cargo que escolhi porque era o mais bem pago. Tinha um subsídio de risco
porque era necessário lavar as máquinas por dentro. E às vezes havia acidentes.
Além disso, era preciso carregar às costas sacos de 50 quilos de soda cáustica.
E a soda cáustica, como o nome indica, é...cáustica.”
Além desse trabalho, teve outros:
na apanha do tomate, nas vindimas, como servente de pedreiro. Mas o dinheiro
amealhado não foi suficiente e, na universidade de Coimbra, onde foi tirar
Medicina, passou fome. “Comia uma vez por dia, ao almoço, na cantina da
universidade de Coimbra. Não tocava na maçã e no pão. Embrulhava-os e levava
para casa, para me servirem de ceia. É difícil dormir quando se tem fome.”
Para dar a volta, rompeu com uma
das suas convicções, a de que ensinar karaté devia ser gratuito. “A fome faz
repensar algumas convicções”. Algum tempo depois de se tornar mestre de karaté,
convidaram-no para ser segurança. Foi segurança de discotecas e, mais tarde,
foi convidado para ser guarda-costas. “Fui guarda-costas de algumas figuras
conhecidas por esse mundo fora. Era contratado para fazer reforço de segurança,
ou seja, em circunstâncias de perigo. Isso permitia-me trabalhar durante duas
semanas, três semanas, um mês, a remunerações absolutamente impensáveis.”
Pedro Choy chegou ao 4º ano de
Medicina mas depois interessou-se mais por um curso de Medicina Tradicional
Chinesa, na Universidade de Marselha. Os outros dois irmãos são médicos e a
irmã é bióloga e uma das mais reputadas investigadoras na área da genética. Uma
família de vencedores. Talvez porque o pai sempre lhes tenha exigido o máximo,
que fossem os melhores. Talvez porque cresceram a ver a mãe num empenho
extraordinário para cuidar de quatro filhos numa terra estranha, onde era vista
como um extra-terrestre. Talvez porque sim, porque lhes está na massa do
sangue. Pedro Choy tem 18 clínicas, espalhadas por todo o país, ostentando o
seu nome, um nome que foi alvo de zombaria e que hoje é um nome de sucesso.
Ninguém diria que o homem por detrás do nome nasceu pobre. Mas nasceu. Muito
pobre. A prova provada de que é possível mudar o destino. Ou, como diz o
provérbio chinês: “É melhor acender uma vela do que amaldiçoar a escuridão.”
* Texto publicado na revista Nós, do jornal i, de Sábado, 27 de
Fevereiro de 2010
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