Ierónimus Bosch (Santo Antão) |
O culto dos santos nasceu junto
dos túmulos dos mártires. No dia do aniversário daqueles que haviam dado
testemunho de Jesus Cristo ressuscitado. Era aí que os fiéis se reuniam para
celebrar o sacrifício eucarístico e invocar a protecção do mártir. O culto dos
santos teve assim, inicio na antiguidade cristã. Em Roma depressa foi adoptado
o modelo que existia, ao nível da sociedade civil, das relações entre os fiéis
e os mártires. Uma relação de clientes e patrono [patronus] (1).
Com efeito, este costume ou
prática, refuta um tanto a ideia propagada pelos reformadores protestantes e
pelos historiadores das religiões. De facto, os santos do Cristianismo não são
os sucessores de divindades do paganismo remoto (2). Sendo, porém, verdade que
na religião cristã, dogmaticamente monoteísta, aos poucos se introduziu uma
certa dose de politeísmo (3). Bem evidente, por exemplo, na Igreja Lusitana
(4).
Os
túmulos dos mártires, enquanto locais de reunião, passaram, mais tarde, a ser
substituídos pelos túmulos dos ascetas e dos bispos. É disso exemplo a
veneração prestada a Félix, um padre-santo de Nole, morto em 250. O mesmo
sucedendo com o túmulo de São Martinho de Tours (316-397). Ambos bastante
venerados, cujo culto foi muito difundido.
O testemunho do primeiro mártir
cristão, Santo Estêvão, ficou relatado em “Actos
dos Apóstolos” (VI, 1-15; VII, 1-60). Uma das primeiras narrativas
hagiográficas, a Epistola que a
Igreja de Esmirna enviou às outras Igrejas em 156 para dar a conhecer a paixão
do seu bispo Policarpo, aquele que havia conhecido na juventude o apóstolo
João, constitui uma primeira forma de canonização, por ter dado origem ao culto
imediato desse santo. O mesmo sucederia com a Epistola enviada pelos cristãos de Lião e Viena em 177 aos seus
irmãos da Ásia para os informar do martírio de Potínio, o velho bispo de Lião,
da jovem Blandina e seus companheiros (5).
Com estas epistolas, as igrejas
locais conservavam assim, a memória dos seus arautos da fé, tornando-se
habitual, deste modo, estabelecer uma lista local desses arautos,
frequentemente comunicada às restantes igrejas. São estas listas que estão na
base de um certo tipo de compilações, normalmente acompanhadas de dipticos
episcopais, às quais, a partir de Beda, o venerável (673-735), se dá o nome de
martirológios (6).
Da mesma forma que estes
martiriológios, copiados e completados abundantemente na época medieval, os
calendários locais, escritos por norma imediatamente a seguir à morte dos
mártires e dos santos, são os testemunhos de confiança mais evidente e mais
conhecidos do culto dos santos. À imagem do que sucedeu com os menológios das
igrejas do Oriente.
É pois a partir do século IV, no
Oriente, que a propagação do culto dos santos cristãos se começa a difundir. “A epopeia
do deserto” irá, em pouco tempo, legar obras das mais importantes que
fundarão os grandes temas da hagiografia e da espiritualidade do deserto. A
mais importante é a “Vida de Santo Antão”,
do grego Atanásio, bispo de Alexandria (c.360). São Jerónimo, contesta por
volta de 374-79, o primado de Antão, redigindo no deserto de Cálcis, na Síria,
a “Vida de Paulo de Tebas”. Estes
temas são recuperados, multiplicados e embelezados por João Cassiano nas “Conversas com os Padres do Egipto”, em
princípios do século V. Estes episódios muito divulgados inauguraram, no
Ocidente, o género literário que são as vidas
de santos, como por exemplo a vita de
Martini, escrita por Suplicio Severo em 397. Irão multiplicar-se
espantosamente a partir de então e durante toda a Idade Média. E irão
contribuir para a difusão do eremitismo ocidental e do numeroso séquito de
santos medievais que, no início, se isolaram nas ilhas do norte. “O itinerário de Columbano”, o mais
célebre monge irlandês é exemplar. Assim como “a história e a lenda de Ronan”, outro santo irlandês. Mais tarde
este isolamento passa para a floresta. Surgem então hagiografias como a “Vida de são Bernardo de Tiron”, escrito
por Geofroy (século XII) –(7).
Em geral, os seus redactores eram
anónimos e procuravam satisfazer a sede popular de maravilhoso, embelezando as
vidas dos santos, transformando-as em lendas autênticas, chegando mesmo a
forjar vidas imaginárias. É com a “Lenda
Dourada” (8), segundo Hippolyte Delehaye, que entre 1261-1266 se “resume
rigorosamente a obra hagiográfica da Idade Média”.
Notas:
[1] No inicio da era republicana, o cliente, um homem
livre mas pobre, colocava-se a serviço de um patrono poderoso, de quem recebia
protecção em troca dos serviços prestados. Esta relação civil espiritualizou-se
à medida que o Cristianismo se difundiu, tornando-se a relação-tipo entre o
fiel e o mártir e, posteriormente, o bispo.
2 HORVAT, Frank; PASTOUREAU, Michel, Figures Romanes, Éditions du Seuil, 2001
p. 143.
3 Cf. VAUCHEZ, André, A Espiritualidade da Idade Média Ocidental,
Séculos VIII-XIII, Editorial Estampa, Lisboa, 1995, Pp. 28-29.
4 Cf. GOMES, Pinharanda, Patrologia Lusitana, pp. 112-113. A propósito das fontes
hagiográficas, sobretudo sobre a hagiografia hispânica, cf. HUFSTOT, Maria da
Luz de G. Velloso da Costa, As Origens do
Cristianismo na Lusitânia, Universidade Lusíada Editora, Lisboa, 2008,
pp.25-33.
5
No século III, as perseguições que se abateram sobre as comunidades cristãs vão
originar uma nova onda de lenda hagiográfica. A tal propósito Cf. GOMES,
Pinharanda, op. cit. p. 106.
6
O primeiro martiriológio conhecido é siríaco e data de 411. Porém, o mais
antigo em latim é o Martiriológio
Hieronimita, indevidamente atribuído a São Jerónimo. Foi composto na Itália
do norte, em meados do século V.
7 GOFF, Jacques Le, O Imaginário Medieval, Editorial estampa, Lisboa, 1994, pp. 83-91.
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