Até que vim a Portugal. Demorei
alguns meses. Quando regressei, encontrei nove gatinhos pretos, já de duas
ninhadas, crescidinhos, uns, dormindo nos maples, outros, pendurados nos
cortinados e o Hondinha no meio de todos como um rei. Lembro-me que fiquei sem
fala, só a olhar. Parecia um Jardim Zoológico.
O pobre Mecharaúro - o mainato -
não sabia que dizer e eu, então, só exclamava:-" Mas que isto, que é
isto?"- Era o que tinha de ser!
-"Minha Senhora, a Pulguinha
teve filhos e eu não os matei porque sei que a Senhora não gostaria. Também não
os dei, a senhora agora é que diz."
E disse. Ficaram e, a pouco e
pouco, fui ou fomos, arranjando novos donos. Mas logo a seguir nasciam outros.
Para cúmulo, uma amiga que veio a
Portugal, pediu-me para ficar com um peixe no aquário e um gato. também preto,
o Pequenú. Era engraçado. Este gato tratava a Pulguinha como filha, nunca lhe
tocou, nem tentou tocar. E quando a dona chegou, não quis sair lá de casa. O
pior é que comeu o peixe, que era muito bonito, encarnado, com grandes
barbatanas como véus. E foi logo no primeiro dia. Enquanto esteve na casa dos
donos, respeitou-o sempre, veio para a minha, achou que tinha esse direito.
Para completar o quadro, um
brincalhão veio pôr-me à porta de casa, mais cinco gatinhos pretos recém-
nascidos. E a pateta da Manuela criou-os a biberon e arranjou-lhes donos mais
tarde.
Continuando este episódio
gatarral, vou contar-vos algo que hoje me faz rir.
Costumava passear com a
bicharada, na rua, em frente da casa. O cão brincava com a gata, arrastando-a
pela cabeça. Depois ela saltava para cima dele ou subia uma árvore,
desafiando-o. Como já estava habituada aquela brincadeira, olhava e ria. Mas
uma senhora que passava num automóvel com uma criança, ao ver o cão arrastar a
gata pela cabeça, começou a gritar e eu a fazer sinais que estava tudo bem e,
por pouco, não teve um grave acidente contra um candeeiro de rua.
Outras vezes, à tardinha, já
escuro, ia passear e era digno de um filme, sem efeitos especiais, porque eram
todos naturais e nem sequer lhes ensinei.
Eu ia à frente, atrás o cão, a
seguir a gata, depois o Pequenú, todos em fila indiana. Quando parava, todos paravam,
para darmos a volta. Paravam e esperavam para não sairem da fila. E por ali
andávamos alguns minutos. Uma noite andávamos tranquilamente no nosso passeio -
já não havia ninguém no bairro, foi no tempo da debandada- quando ao longe vi
um homem a caminho da Praia dos Pinheiros, que não era tão longe assim. Esse
caminho ficava entre a minha casa e o A.T.C.M. .Dei o sinal de alerta quando o
homem de repente se virou, quase a correr, direito a mim - vendo-me sozinha - e
eu dizendo "vamos" corri para a porta de casa e todos correram atr+ás
de mim, fechando eu a porta. Foi um senhor susto.
Quando fomos para Maputo, só
tinha o Hondinha e a Pulguinha e levei-os comigo. Não tinham a mesma liberdade
que na Beira e os tempos também eram outros. Abandoná-los é que não. Foram de
avião comigo.
Às vezes a gata arranjava um
namorado e quando os filhos nasciam, vinha para o maple onde eu estava sentada,
para dar à luz. A primeira vez fiquei admirada, porque não veio para o meu
colo. mas sim atrás de mim, dando pequenos miados e olhando-me. Quando percebi,
fui buscar uma toalha, dobrei-a e um a um, mais uma ninhada de cinco. Num dia
de parto, estava com visitas e ninguém deu por isso. Mostrei-os quando tudo
acabou e estava tudo limpinho. E assim passaram cerca de três anos.. Na
primeira ninhada, em Maputo, eu dera uma gatinha aos donos de um restaurante,
que poucos dias depois também partiram. A gatita ficou na rua e eu soube porque
a empregada zulu viu-a e também viu o restaurante fechado. Mal chegou a casa,
disse-me, saindo logo a correr e trazendo-me a gatinha. Um dia a Pulguinha,
para minha grande admiração, estando prestes a dar à luz outra ninhada, foi até
à porta de entrada e miou para sair. Era a primeira vez que tal acontecia. Só
apareceu quinze dias depois, magra, sem filhos e muito triste. O Hondinha
fez-lhe uma grande festa, mas ela não teve grande reacção. À noite abri-lhe a
porta para ela sair, receando que os filhos estivessem algures, mas ela recusou
sair. No dia seguinte mandei procurar os animais, mas não foram encontrados.
Nestes três anos, a Boneca - nome
que dei à jóvem gatinha - ia tratando dos irmãos, mamando sempre na mãe a par
dos pequeninos e fingindo ser a mãe dos irmãos, dando-lhes de
"mamar". Perguntei-lhe que disparate era aquele, pois eles fingiam
mamar sem ela ter leite. Dir-se-ia que os animais compreenderam a minha
pergunta, pois olharam-me descarados, lambendo a boquita. As tetas da irmã mais
velha, que eu vi estarem ressequidas, faziam de chupeta e mamar a sério era na
mãe. E a marota da Boneca espreguiçou-se, de barriga para o ar, para me mostrar
o que estava a fazer. E a Pulguinha sempre a dormitar, sem grande reacção.
Aceitava as minhas festinhas, continuava a dormir nos braços do Hondinha, comia
muito pouco e sempre triste. Até que uma noite, um mês depois da primeira saída
pela porta, dirigiu-se de novo para a porta, miando para sair. Fêz-me impressão
aquele miar triste quando se dirigiu para a porta e hesitei. Mas tornou a miar
como que a pedir por favor. Antes de descer as escadas que davam acesso ao
rés-do-chão, a escada de serviço, parou, olhou para mim como se estivesse a
despedir-se, deu um miado que me arrepiou e nunca mais regressou. Não me
conformei facilmente e durante dias andaram a procurá-la por todos os recantos
do prédio, mas o corpo nunca apareceu.
Ficaram o Hondinha e a Boneca e
foram eles que vieram para Portugal seis meses depois, documentados e com
passagens de avião. Foram muito felizes enquanto viveram comigo. Depois fomos
para Sines oito anos e eles ficaram na Figueira e a felicidade acabou. O
Hondinha, que nunca saía de casa e jardim, desapareceu e não foi por vontade
dele e a Boneca só entrava em casa no dia em que vínhamos de visita e todos os
filhotes que ela começou a ter, desapareciam, nunca lhe vi nenhum. Até que,
vendo tanta maldade e dizendo-me que não queria ali a gata, pedi à minha Mãe se
arranjava alguém decente que a quisesse e sei que foi feliz até morrer em casa
de uma senhora que vivia sozinha, em Coimbra. Foram uns grandes companheiros.
"
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