Por: Bernardino Henriques
|
(Apresentação do livro: Trás-os-Montes e Alto Douro – Mosaico de Ciência e Cultura, Bragança, 6 de Junho de 2012)
Minhas senhoras, meus senhores:
No princípio, era a ideia. A ideia estava junto do António Neto. E a ideia fez-se livro pela magia do Armando Palavras que, através das palavras de 73 apuradas penas, esparramou pelos quatro cantos do mundo os perfumes transmontanos, como o fizeram, outrora, os missionários do Freixo, muito bem elencados pelo Inocêncio (Mosaico, 37-41), ao chegarem à Índia, China e Macau; como o fez Fernão Magalhães, que também era de cá, ao circum-navegar o mundo; ou como o fez um certo Luís de Camões, dos lados de Vilar de Nantes, que a Galiza, berço do apelido, fica mais perto de Chaves do que de Coimbra, ora essa, ao escrever a epopeia de todos nós na gruta de Macau.
De facto, é assim: o livro Trás-os-Montes e Alto Douro – Mosaico de Ciência e Cultura é um autêntico jardim onde há de tudo. Parece o jardim do Éden, com a devida licença para misturar alhos com bugalhos, que é o mesmo que dizer, matéria com espírito. Mas, será assim tão descabida a analogia? Não foi o Verbo a criar o Éden na madrugada da vida? E o que é o Verbo senão a Ideia? E que profusão de vida perpassa por este Mosaico transmontano-duriense, santo Deus! Uma autêntica galeria do mais alto valor. Eu diria que agora, o reino maravilhoso torguiano dispõe de uma segunda cartilha (depois da primeira que é a do João de Deus) onde está tudo escrito, e que será um ponto de referência obrigatória para quem pretender dizer alguma coisa de substancial sobre a nossa terra. Desde a análise e reflexão até à gastronomia, passando pela arte, pela ciência e pela música, dando a volta ao país e ao mundo, rememorando personagens de outras épocas, nela avultam páginas que são autênticas jóias de prosa e de poesia, a causar inveja às de Camilo, Trindade Coelho e Guerra Junqueiro.
Então, e o Torga? Que é dele? É, que, se bem me lembro, ninguém alude ao escritor de São Martinho d’Anta. Mas, a verdade é que nem a ele se deveria aludir, pois ele é o 74º (septuagésimo quarto) convidado de Armando Palavras. Ou, se quisermos, o primeiro. Não figura ele na capa e na pala da capa, como se fosse o patrono? Isso mesmo, o timoneiro. O maior e o melhor de todos nós.
E bem merece esta distinção, pois que o autor de O Diário, que calcorreou a pátria de lés a lés, também andou pelos orientes: pelo de lá, onde fez o mais assombroso panegírico que jamais se ouviu em honra da língua portuguesa, e pelo de cá, com a devida vénia do convidado Bento da Cruz (Mosaico, 49-50), concretamente por Lagoaça, com nada menos que três entradas nessa obra parabólica da sua vida, corria Outubro do ano da graça de 1956. Nessas três páginas, o maior andarim que Portugal já teve, quis deixar o selo de três das variadíssimas facetas da sua rica personalidade, e que eu seguidamente vou abordar, a saber: a de escritor, a de enamorado pela a natureza e a de transmontano.
1 – Escritor
Quando, no dia 27 de Outubro de 1956, calcorreava semeadas no termo de Lagoaça, e se rilhava interiormente de vergonha ao contemplar a gente simples espalhada pelo planalto a lavrar a terra, Miguel Torga tecia este comentário: “À sua maneira, lutam por valores que procuro servir também. Mas que grandeza a deles, a escrever incansavelmente no livro da terra páginas infindáveis de suor anónimo, e que pequenez a minha, a lançar no papel meia dúzia de versos arquejantes e assinados!” (Diário VIII, 61).
Nós poderíamos acrescentar: que grandeza de espírito a deste homem que identificava o seu destino com o dos camponeses de Lagoaça! Estes escreviam nos sulcos da terra com o suor do seu rosto os seus destinos e os seus valores que eram iguais aos dele, só que escritos no papel.
Este é que é o verdadeiro escritor e o verdadeiro poeta: o que verseja a vida tal qual ela é, com a rima do calor do húmus e com o ritmo da solidariedade! E esta é que é a verdadeira arte, aquela em que o nosso poeta-escritor era exímio: a da humildade.
Em Torga, ser escritor é o mesmo que ser poeta. Ele escrevia e, tudo o que ele escrevia saía-lhe da alma envolto como que num véu de magia literária, que é a arte por excelência de ser um criador, um mineiro (Diário XII, 171-173), um pintor da vida (Diário V, 115-116), um fiscal e um crítico social.
Para Torga, ser poeta é ser samaritano e enfermeiro “capaz de colocar um penso astral no concreto desespero duma ferida” (Diário VI, 38-39), é ser aquele que vela pela pureza das nascentes (Diário XIII, 168), é ser a voz que não desiste de anunciar os tesoiros “que se escondem no barro da nossa condição” (Diário V, 196-197).
Mas o Torga tinha também a consciência de ser alguém incómodo que “mais cedo ou mais tarde, obriga os detractores a um embaraçoso mea culpa” (Diário XIII, 171-172). E acrescentava, respondendo a um inquérito de um jornal francês da época: “Só quando insubmissos… os poetas serão capazes de cumprir a sua missão divinatória por conta de todo o sofrimento humano” (Diário V, 17-20). E dizia: um verso “se é genial, há nele uma tal carga emotiva e um fascínio intelectual tão denso e coeso, que pode virar o leitor do avesso” (Diário XIV, 100).
Sim, tudo o que Torga escrevia era para servir a humanidade, tal como o lavrador que, se pudesse, saciaria toda a fome existente à face da terra com o fruto do seu rosto.
Na sua poesia, eu acrescento, na sua prosa, havia qualquer coisa que o transcendia porque se dava conta de que o escrever é um acto ontológico (Diário XVI, 114), cheio de dignidade e glorioso quando “for o reflexo sublimado desse verbo indomável que é a voz subterrânea de toda uma comunidade” (Diário XVI, 151).
Mas por ser um acto de tão grande responsabilidade, quando pegava na caneta, fazia-o com o mesmo escrúpulo com que pegava no bisturi, pois tinha a firme convicção de que o seu “canhestro manuseamento”, se não matava a pessoa fisicamente, podia perverter-lhe o gosto e torcer-lhe a consciência” (Diário VIII, 99).
Era por isso que procurava sempre a perfeição, muito embora, a sua humildade não lhe permitisse ver no que escrevia nada mais que “páginas de carne viva” que lhe pareciam “sudário de letras mortas” (Diário XIII, 25), ao ponto de se sentir um “culpado contrito quase a pedir desculpa aos ocasionais leitores” do seu atrevimento (Diário XVI, 115), sempre que nas montras expunha algum livro seu.
Felizmente para nós, a sua obra é um monumento mais perene do que o bronze, na expressão do latino Horácio. E todos nós acreditamos, como ele lá no fundo, no fundo do seu espírito tenuemente pressentia, que os seus escritos poderiam vir a ressuscitar. Porque, como ele dizia, “o próprio autor ignora a grandeza do milagre que fez. Paga por ele o preço da incerteza eterna” (Diário X, 81-82).
2 – Enamorado pela natureza
Também em Lagoaça, a 28 do mesmo mês, escrevia: “Mato-me a andar. Mas alguma vida limpa hei-de ter neste emporcalhado tempo português que me coube. E assim tenho-a. Os restolhos escovam-me os pés e a alma de quanta imundície se lhes colou em trinta anos de vasa nacional” (Diário VIII, 61).
Alguns chamaram-lhe telúrico, como sinónimo de agarrado à terrinha natal, como se o quisessem apelidar de parvónio. Até há quem afirme que não o propuseram para o Nobel de Literatura porque julgavam que a sua obra era uma questão regional, só para ser lida intra muros, no seu torrão transmontano. Nada mais falso. Isso só manifesta as vistas curtas daqueles de quem o próprio Torga se queixava que, além de nunca o terem lido, o único que tinham era inveja.
O Torga é telúrico, é, sim senhores, se o adjectivo for sinónimo de enamorado pelo planeta terra, ou, melhor ainda, pela natureza.
Em sintonia total com ela, sendo um geófago insaciável que se empanturrava de horizontes e de montanhas (Diário VIII, 149-150), considerava-se a figuração humana da natureza (Diário XV, 10). Confessava que desde o nascimento vivia identificado com as realidades primordiais e ancestrais (Diário XII, 188-189) que era preciso ir reconhecê-las nas vessadas e nos socalcos, pois só aí ganhavam sentido as suas rugas (Diário XII, 188-189). E afirmava: “As dobras e as cores do chão onde firmo os pés, foram sempre no meu espírito coisas sagradas e íntimas como o amor. Falar duma encosta coberta de neve sem ter a alma branca também, retratar uma folha sem tremer com ela, olhar o abismo sem fundura nos olhos, é para mim o mesmo que gostar sem língua, ou cantar sem voz. Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria no meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno” (Diário II, 72).
Essa identificação com a natureza durou a vida inteira. No dealbar dela, “mesmo a cair aos bocados”, tinha que fugir à cidade porque o roía interiormente a “nostalgia instintiva do simples, do espontâneo, do verdadeiro” (Diário X, 84-85), e como ouvimos, era nos restolhos que ele ia desempoeirar os pés e a alma da imundície e da degradação moral que se lhe iam agarrando na rotina do dia a dia (Diário VIII, 161).
Para o Torga, mesmo passada a fase crítica e semi-panteísta da sua vida, ou seja, as décadas de quarenta e cinquenta, do século XX, em que a Terra era para ele a deusa suprema, a natureza continuava a ser para ele uma espécie de divindade que ele interiorizava e deixava que falasse pela sua própria boca (Diário VII, 149-150). Atribuía-lhe tão grande pureza que, se doente, calcorreava os montes, tinha a sensação de os infectar (Diário VII, 54).
Pertença dos três reinos da natureza (Diário XVI, 16), como ele reconhecia, amava tudo o que era natural: os animais, as flores, o mar, mas era a serra que mais fazia estremecer as fibras da sua alma. Fora dela, tinha a impressão de estar inseguro e em perigo iminente. Ao contrário, nas suas dobras sentia-se na plenitude do ser normal, casado e harmonizado com o meio (Diário V, 53), e era como se se desencadeasse nele uma centrifugação do espírito, não resistindo a cantar, como se num templo estivesse: “São troncos, as colunas… folhas os vitrais” (Diário IX, 186).
(continua)
Livros do autor
Sem comentários:
Enviar um comentário