Na terceira entrada feita em Lagoaça, a 29 do mês a que nos estamos reportando, deixa o seguinte desabafo: “O Doiro entoirido pelas primeiras barragens. É como se na minha própria aorta se formassem aneurismas” (Diário VIII, 61).
Se o Torga voltasse, e estivesse hoje aqui presente, não consentiria que nenhum de nós amasse mais do que ele a nossa região transmontana. Trás-os-Montes estava-lhe no coração. Mais, fazia parte da sua natureza, como se os montes fossem o seu substrato esquelético e o Doiro fosse a sua artéria aorta.
Começaria por nos apresentar o seu reino maravilhoso com que encantou os transmontanos no Rio de Janeiro e embevece ainda qualquer leitor que, livre de preconceitos, ande à procura só da beleza da palavra. Que linguagem, santo Deus! Que entusiasmo, que estilo, que ritmo, que cadência a dessas páginas! Aquilo é poesia do mais elevado quilate numa prosa tersa e pura a superar tudo o que antes foi escrito.
Oh, como nos mostraria a sua terra que levava no coração! “Vê-se primeiro um mar de pedras. Vagas e vagas sideradas, hirtas e hostis, contidas na sua força desmedida pela mão inexorável dum Deus criador e dominador” (Portugal, 27). (…) “Um nunca mais acabar de terra grossa, fragosa, bravia, que tanto se levanta a pino num ímpeto de subir ao céu, como se afunda nuns abismos de angústia, não se sabe por que telúrica contrição” (Portugal, 30), que quase por milagre é capaz de dar vinho e pão, esse pão que “sabe a trabalho” e é beijado pelos naturais “quando ele cai ao chão”, e esse vinho que “mana das fragas à ordem de vozes imperiosas como a de Moisés quando feria a pedra do Horeb” (Portugal, 31).
Que doçura perpassaria por aquela alma quando comparasse os íngremes socalcos desse seu reino, a varandins palacianos onde crescem “as cepas como manjericos à janela”!
Que felicidade transmitiria a sua pena, quando o comparasse a um paraíso onde bastava estender a mão para se colherem todos os mimos que se transformavam depois em luz, em agasalho de enxames ou em bragais de noivas! (Portugal, 32).
Mostrar-nos-ia a sua bela prosa, aquela prosa que embala o “fruto dos frutos”, a castanha, a cair de umas árvores “puras como vestais” que parecem encarnar a “virgindade da própria paisagem”; ou aquele animal que dá pelo nome de porco, com a vossa licença, origem desses manjares que ensacam o sabor das invernadas passadas ao borralho “e uma ciência infusa de temperar, que vem desde que a primeira nau chegou à Índia”; ou Sua Senhoria a perdiz que, “quando o tiro lhe acerta e cai, parece uma deusa morta”, que até a pender do cinto infunde respeito; ou a truta que, representando “com dignidade e bravura o mundo da barbatana”, sobe pelos rios acima “como os rapazes pelos mastros ensebados” (Portugal, 33-35).
Enfim, se ele estivesse aqui, seria um nunca mais acabar de bebedeiras de beleza ao referir-se às águas, às Caldas, às riquezas minerais do ventre desta terra que “é tudo quanto Vulcano forjou” e, principalmente, aos “homens de uma só peça, inteiriços, altos e espadaúdos, que olham de frente e têm no rosto as mesmas rugas do chão” (Portugal, 35-36).
Mas lamentaria com João de Sá, que nesta sua e nossa terra “vicejante e esbelta, acolhedora e terna (…) tenham emudecido “as chiadas dos carros de bois, o farfalhar das charruas e das enxadas a arrotearem os campos” que não passam de “leiras abandonadas propícias ao medrar das silvas e dos cardos e ao definhamento da esperança dos homens” (Mosaico, 34).
Lamentaria com Telmo Verdelho, ter de verificar que “Lisboa perdeu a consciência de um espaço nacional” à qual não “interessam as fronteiras nem as regiões fronteiriças que estão vazias de votos…” a sofrerem “dependências como nunca tinha acontecido, até ao limite da sobrevivência” (Mosaico, 29).
Mar de Trás-os-Montes |
Lamentaria com Adriano Moreira, a emigração para a orla marítima e para as cidades, os campos abandonados à medida que as aldeias se despovoam; o mar sem uma frota capaz de explorar a nossa plataforma marítima “onde se encontra uma riqueza de grande vulto” (Mosaico, 16).
Lamentaria com Amadeu Ferreira a dor daquele pai a dizer ao filho: “Vai, meu filho! Aqui em Portugal nunca vais arranjar nada compatível com os teus estudos” (Mosaico, 325), e com o Vítor da história de Jorge Tuela, que, ao pretender voltar às suas raízes encontrou “tudo coberto de giestas e silvas” (Mosaico, 100).
Intumesceria a artéria aorta com aneurismas, por já não poder “ouvir gemer os rabelos”, nem “mergulhar os olhos na levada terrosa”, nem testemunhar a fúria dos cachões” do seu Doiro (Diário IX, 170), já entoirido em todo o seu leito que não apenas no começo, como no tempo dele (Diário VIII, 61).
Mas, isso sim, continuaria a tentar atingir “o cume mais alto, a fraga mais escarpada” da sua terra e a ficar ali “horas e horas estendido ao sol, de barriga para o ar, a olhar o azul puríssimo do céu” (A Criação do Mundo II, 51-52).
E continuaria a subir ao alto de S. Leonardo para testemunhar aquele “excesso da natureza” bordado de “socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas”, todo aquele “universo virginal” que é um autêntico “poema geológico”, a “beleza absoluta” (Diário XII, 176-177), e a contemplar esse santo patrono a conduzir o seu rabelo calma, calmamente, como quem tem saudades de deixar a terra antes de aproar no céu (Diário IX, 91).
E continuaria a galgar os montes sobranceiros ao Doiro a “receber nos olhos comungantes cada imagem esplendorosa como um sacramento” (Diário XV, 166).
E continuaria a visitar Alijó e a garantir que este Doiro é dele “por eleição e por herança”, e a desafiar os proprietários daqueles paraísos, afiançando-lhes ser ele “mais dono das quintas do que os próprios donos” (Diário XV, 155).
E continuaria a ir a S. Martinho d’Anta, pela primavera, a “ver a azálea e o negrilho” porque vislumbrava que a sua ressurreição era símbolo da dele (Diário XVI, 16).
E apostaria, como Adriano Moreira, no regresso à terra e ao mar a fim de “retomar os cuidados e as actividades que asseguraram, ao longo dos séculos, a capacidade de a retaguarda ser preservada, defendida e fortalecida, para que as promessas de futuro reganhem vigor, confiança e viabilidade” (Mosaico, 16).
E comungaria, certamente, do anseio do P. Fontes, em “manter, enriquecer e proteger esta terra e gente de identidade cultural viva, própria, diferente, inigualável, rica numa Europa das regiões” (Mosaico, 149), mas discordaria dele no afã de querer fazer a regionalização “por todos nós”. O nosso poeta tinha um conceito muito estreito de regionalização. Dizia que não conseguia imaginar-se estrangeiro em Viana, Tomar ou Silves” (Diário XVI, 105-106). Talvez hoje mudasse de opinião, tal isto anda.
Conclusão
É este o gigante que sustenta, com um pilar feito ode “Aos Poetas”, o magnífico pórtico da colectânea que apresentamos em Bragança, que também se pode orgulhar de duas entradas no seu Diário. A primeira, num quadro enigmático e sugestivo desenhado pelas ninfas e protegido pelo céu (Diário IV, 60), e a segunda em que, do alto do Castelo, com o coração apertado, vai juntando os pedaços do Portugal de então que estava por um fio (Diário XII, 147). Como o de hoje.
É este homem em pessoa que convida os poetas (e poetas somos todos nós) a serem “menestréis de uma gesta de amor universal”, de uma epopeia “que não tenha reis, mas homens de tamanho natural” numa terra sem fronteiras, e a levantarem “paredes de ilusão… e se calcem de sonho e de poesia”
Minhas senhoras, meus senhores:
É preciso aceitar o repto profético, eu diria isaiano, de Miguel Torga, de construirmos uma terra em que os homens convivam em paz e de mãos dadas, uma nova terra onde impere a lei do amor.
Porque, como muito bem o expressa Modesto Navarro, “é sempre possível conquistar o impossível, ir mais longe, sempre mais longe… lá onde se encontra a alegria e a fraternidade, a ambição e o sonho de fazer de novo o que está errado e criar o que não existe” (Mosaico, 46).
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